Não basta ser pai e mãe, tem que ler junto
A leitura compartilhada com o filho fortalece o vínculo afetivo, propicia conversas encantadoras e ainda serve de antídoto para o excesso de tecnologia
Tenho uma pequena leitora voraz em casa. Letícia, minha filha mais velha, está com 9 anos e se interessa por gibis, livros seriados infanto-juvenis e crônicas. Ela é capaz de reler o mesmo livro três vezes, rindo e absorvendo tiradas para seu acervo pessoal de piadas. Sim, isso me enche de orgulho. Sim, isso também é mais do que eu mesma fazia na minha infância rodeada por livros. Confesso que vê-la tão absorvida pela leitura reduz bastante minha preocupação com o excesso de tecnologia, desafio para o qual ainda estamos nos municiando como pais de uma geração hiperestimulada por smartphones. Ninguém sabe ao certo onde isso vai dar. A única constatação imediata que se tira olhando ao redor é que já não se conversa à mesa do restaurante como antigamente. Por isso, toda minha ojeriza aos celulares durante refeições e reuniões de família e amigos.
A leitura – junto com conversas de verdade e atividades físicas – me parece, até que me apresentem argumento mais convincente, o melhor antídoto para os males da tecnologia. Não à toa esse foi o tema de um dos debates da Feira do Livro Infantil de Bologna, na Itália, na semana passada, o maior evento do tipo no mundo. Recém-chegada de lá, a promotora de Justiça e escritora Ariadne Cantu, autora de 16 livros infantis e mãe de três, me contou que escritores e educadores estavam debatendo até que ponto o imediatismo digital irá afetar a construção dos pensamentos. Não por outro motivo, Gianna Vitalli, uma simpática senhora de cabelos grisalhos que integrava o júri do Hans Christian Andersen, o maior prêmio de literatura infantil, propôs, em sua fala de abertura na feira, que a educação infantil nesses tempos de alta tecnologia atente para o valor da leitura e “reformate a cabeça dos professores”. “As crianças precisam de tempo livre para aprender. Elas precisam reaprender a ler”, disse.
Como vocês, estou também muito interessada nessa investigação. Converso com amigos, procuro ouvir e ler o que os especialistas têm a dizer, enquanto observo, na minha casa, o impacto disso tudo nas duas crianças, sobretudo na caçula, que, aos 5 anos, não está alfabetizada, descobriu os joguinhos muito antes da irmã, e outro dia verbalizou de forma singela uma reivindicação que volta e meia reaparece. “Estou cansada de não ter um ipad!”
E nem adianta eu dizer que também não tenho porque além de celular, uso um leitor digital de livros, o que, para ela, dá no mesmo. É tudo tecnologia. Se eu uso para ler ou jogar, não faz a menor diferença. Vá explicar.
Com a baixinha, a gente tem que sentar e ler. Pegar pela mão e convidá-la para uma viagem pelas letras ou apenas pelas imagens dos livros silenciosos, sempre uma ótima aposta para instigar a curiosidade dos iletrados. Isso dá trabalho. Precisa fazer questão, às vezes até brigar com a televisão, lançar argumentos infalíveis e contar com um autor inspirado, lógico. As prateleiras de livros infantis para ela estão quase rentes ao chão. É o tipo de produto que precisa estar ao alcance das crianças. No meio do caminho, entre nós e os livros, entram não só os atrativos da tecnologia, mas o cansaço, a falta de tempo, a necessidade de dar atenção para todo mundo aqui e agora.
Não basta olhar feliz para a criança que resolve folhear sozinha um livro. Tem que desligar as notificações desnecessárias da tela do celular, sentar e dizer “está na hora da nossa leitura” e não deixar ninguém se intrometer. A exclusividade é o toque especial para coroar esse hábito que, como pais, temos a obrigação de ajudar a construir.
E depois que eles aprenderem a ler, passada a fase inicial de dificuldades, qual será o nosso papel?
Ler junto, de vez em quando, pode apostar. A missão não termina na alfabetização nem quando eles adquirem fluência na leitura. “É legal ler junto, todos saem lucrando. Você se aproxima afetivamente da criança e ela de você. Milhares de coisas não escritas no livro podem ser ditas”, afirma Ariadne.
Ler junto significa levar para dentro de casa o que muita gente acredita ser responsabilidade apenas da escola. Influência é a arte de contagiar esses pequenos aprendizes com nossos hábitos. Apesar de reclamar a falta de um ipad, a verdade é que Carolina, minha filha menor, está cada dia mais ansiosa para ler como todo mundo da casa, pedindo para digitar no computador a frase que eu pretendo escrever quando sento para trabalhar (foi ela que escreveu “enquanto Carolina”). A obra segue em construção.
Letícia propõe que eu leia o livro que ela terminou de ler. Quer saber a minha opinião, conversar comigo sobre a história. Eu também tenho essa curiosidade. Afinal, que tanto ela lê e gosta? Estará entendendo tudo? O significado das novas palavras? O dicionário está lá, ao alcance das mãos, mas querer que a criança o consulte toda hora é exigir demais. Que lições tira das histórias? Se for um livro da minha infância, fica fácil interagir, mas há muitos títulos novos. A demanda é constante e crescente. Mal tenho tempo para dar conta dos títulos e dos autores que me interessam. Que horas vou ler o livro infanto-juvenil que já não se consome numa única tarde de tão grande, eu me pergunto. E o que faço com a outra filha que me cerca em busca de atenção nessa tarde propícia à leitura? Vida em família é assim: pontuada por negociações nem sempre frutíferas. Mas as soluções são sempre individuais, variam de casa para casa, e eis que temos uma chance. É tarde, a pequena ouve histórias do pai no quarto enquanto eu e Letícia sentamos para ler um gibi.
Estamos lado a lado, ela apoiada no meu ombro. Alternamos os personagens. Seguimos nessa leitura dramatizada e em voz alta. Tenho chance de perguntar se ela entendeu o significado de uma palavra ou outra. Ela fica feliz de me ver rindo das cenas que ela também achou engraçadas. Eis que na última página da revistinha, não encontramos o “fim” mas um “continua”. Ela me olha com os olhos apertados e séria conclui: “Detesto quando isso acontece. Agora vou ter que esperar a revistinha do mês que vem e ainda estamos no início de abril!”
“Putz, é mesmo”, digo, solidária.
Fechamos o gibi. A hora voou, a irmã chegou toda animada e acesa no meu quarto, o pai veio atrás com cara de quem desistiu da empreitada, mas Letícia ainda está com a cumplicidade esculpida no olhar. Sorri, já despreocupada com o fim da história que não veio.
“Adoro ler com você”, digo. “Precisamos fazer mais.”
“Eu também”, ela retruca, sorridente. “Mãe, eu acabei de ler um ótimo livro e posso te emprestar também”, completa, sustentando o assunto, antes que a noite acabe.
Eu sei. E vou dar um jeito de ler. Ah se vou…
Fonte: Época Globo