Num carro inusitado
Conto selecionado no Concurso “Todos Nós”, de Eric Fujita.
Mas que dia quente em plena correria de compras. Afinal, era antevéspera de Natal. Pena que Renato estava impossibilitado de conviver com esse clima devido a um acidente de trânsito. Ele não tinha como andar livremente porque só conseguia se locomover de muletas com muita dificuldade. Depois de sair da fisioterapia, veio a oportunidade dele comandar novamente o volante de um carro.
Era uma BMW, uma Ferrari ou um simples veículo popular? Nada disso. Renato estava no banco de um carrinho usado por deficientes físicos, oferecido pelo supermercado que havia ido junto com o seu pai. De longe, lembrava o ambiente de um automóvel. Em vez dos lugares para os passageiros, o possante tinha apenas o espaço do piloto e uma cestinha para carregar as mercadorias escolhidas.
As ruas com prédios, estabelecimentos e residências davam lugar aos corredores recheados de prateleiras. De semelhante, só havia a chave para ligar o carro. Ele deu partida e foi para seu primeiro passeio desde o desastre. Andava pelo supermercado que nem uma criança feliz da vida atrás de brincadeiras. O acelerador ficava num botão que apertava com o dedo indicador direito. A marcha ré era no dedo esquerdo. Só tinha um grande problema. Onde ficava o freio?
Renato sentia a falta de um mecanismo para parar o carro num momento de emergência. A tamanha quantidade de clientes mais parecia o trânsito congestionado das grandes vias paulistanas. Como não conseguia frear, veio o primeiro acidente após o desastre que o deixou com a perna sem parte dos movimentos.
O jeito atrapalhado de conduzir o veículo o fez acertar as pernas de uma típica dona de casa, com lista na mão, carrinho de supermercado cheio de compras e um monte de filhos. Três no total. A vítima estava de costas. O jeito foi disparar automaticamente:
– Filha, você não tem cuidado com as compras e a sua mãe?
Imediatamente ela percebeu que Renato foi o responsável pelo descuido. A fisionomia dela mudou completamente. De brava, passou para uma cara de surpresa. Em seguida, falou novamente num tom sem graça:
– Desculpe. Pensei que fosse uma de minhas filhas, mas não um deficiente.
A resposta de Renato foi rápida:
– Tudo bem. Mas graças a Deus a deficiência é temporária.
Logo depois, Renato voltou para o conturbado movimento do fim-de-ano. Aos poucos, aprendeu a controlar a velocidade do temporário meio de locomoção. Conseguiu evitar novas colisões. Porém, os fatos inusitados continuavam a surgir. Enquanto estava ao lado dos panetones, um menino de quatro anos se aproximou:
– Por que o tio gosta de andar de carrinho que nem a gente?
Renato não teve como ignorar a sinceridade infantil:
– O tio quer brincar bastante hoje aqui. Você faz isso na sua casa?
– Eu tenho uma moto que brinco no quintal com o Davi. Disse o garotinho, que talvez tenha se referido a um amigo, irmão ou um primo.
Com o panetone escolhido, Renato voltou aos corredores. Novamente ao lado do pai, o rumo agora era um dos inúmeros caixas de pagamento. Ao contrário de ir ao destinado para os deficientes, os dois resolveram enfrentar a fila convencional dos clientes com até 20 itens. Desta vez, o problema foi manobrar o carro para poder passar.
Se fosse num trânsito convencional, Renato seria chamado de barbeiro, pois bateu várias vezes nas prateleiras das promoções. A condição de deficiente temporário fez um rapaz tomar uma iniciativa:
– Espera que eu te ajudo a passar.
A atitude solidária deste jovem levou outros homens a auxiliar. Eles levantaram o carro numa posição que Renato conseguiria passar. Ele agradeceu e pagou pelas compras.
O fato de Renato ter passado por dificuldades ou mesmo algumas situações inusitadas ajudaram a dar um tom mais alegre para o primeiro passeio pós-acidente. Na verdade, pensou que seria menos divertido. O clima descontraído também lhe deu forças para enfrentar novas investidas nos corredores do supermercado, após devolver o principal companheiro dessa aventura e receber de volta o par de muletas responsável pela locomoção.