Testemunha, por Pedro Tierra
17.00 horas
Meus olhos não anoitecem e sei:
não era este o corpo que usavas
para caminhar entre os homens.
Tua carne é apenas tua dor.
19.30 horas
Com os dedos da memória
vigio:
a cabeça cortada em pedaços
de negro e relâmpago
pelas agulhas dos dínamos.
Os dentes cariados do algoz
trituram o grito dos teus ossos.
23.00 horas
Durante séculos enterrados
meus olhos não se fecharam.
Um gosto de vidros estilhaçados
risca a garganta e a alma.
Sinto, na sombra, o brilho dos punhais
a percorrer o corpo,
devastado território
de madeiras em fúria.
03.00 horas
Como um cego de olhos eternos,
a quem as facas do Tempo
arrancaram o véu das pálpebras
vigio:
pasto de tempestades,
tua carne extingue
a brasa dos cigarros
num lago de sangue
e cinzas…
05.45 horas
A garganta dos corredores
devora tua vida:
fardo de sobressaltos.
Meu peito não se cerrou.
Sobrevivente,
aqui te recebo:
bagaço devolvido
pelas oficinas da morte.
Sinto crescer o coração no peito,
fogueira ardendo em madeira antiga,
poema indeciso a desatar-se
da alma inconsútil do teu silêncio.
*** Poema extraído do livro “A palavra contra o muro“.