Pra você é só poesia pra mim é vida…
A boa poesia é obra de alquimia solitária, incansável burilamento, lapidação do sentimento e da inspiração. Laboratório místico onde se desmonta e remonta cada palavra, retirando-a da linha reta, até extrair todos os seus segredos e dizer o indizível. José Carlos batuca nas teclas para exercer o ofício de jornalista sempre atento em não deixar que o “uso profissional das palavras” vire vício mecânico. Não perde o abuso emocional da palavra quando amiga da linguagem. Em seu dom de ser doce, sem perder o amargo lirismo que rumina a crueza do toque instantâneo do cotidiano. Com ilustrações de Carmen Santhiago e Kleber Sales.
Confira três poemas que compõe Poemas de paixões e coisas parecidas, de José Carlos Vieira.
No fundo da retina
sei do teu desejo mais sujo
do teu orgasmo mais cru
sei da tua pele salgada
das tuas unhas venenosas
eu sei
sou teu anjo, tua vaga mentira
teu poeta, tua melhor rima
teu cheiro de carne perfumada
teu melhor prazer
sou eu
aquele a quem sempre mentirás
cuspirás, jogarás pedras
negarás tua própria verdade
eu sei
sou eu
teu melhor defeito…
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Tatuagem machucada
me deixaste
pó
coração
acelerado
dó
não ligou
o celular
só
decidi esquecer
rasgar retratos e saudades
não trocar a lâmpada
queimada do nosso quarto
cacos, sangue em poemas
discos do Led arranhados,
camiseta rasgada
nada, nada fere mais
que tua ausência
há uma carta no livro de Bashô
selada e fechada
uma carta que não dirá nada
além de adeus, “vá se fuder!”
o vento frio abre a janela
corta a alma como gilete
retalha toda a esperança
de te reencontrar
mas há lua lá fora!
há lua sobre as nuvens cinzas
há lua sobre essa melancolia
barba por fazer
pílulas no chão
o sal das lágrimas
marca a face esquecida
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Certidão
não sou poeta
de letras perfumadas
não quero sê-lo
prefiro palavras
que cortam pulsos
mordem línguas
sangram lábios…