Carreira Alvim: “Não tenho mais medo. Fui processado por algo que não fiz”
Preso na Operação Hurricane por venda de sentenças para liberar caça-níqueis, juiz contra-ataca o Supremo e a Polícia Federal em livro. Ele jura inocência
Por André Vargas
Na manhã de 13 de abril de 2007, a Operação Hurricane, da Polícia Federal, botou atrás das grades magistrados, advogados, policiais e empresários. Todos fariam parte de um grande esquema de jogo ilegal e crimes contra a administração pública, incluindo a venda de sentenças judiciais e liminares para manter casas de bingo em funcionamento. Jogados na ilegalidade em 2000, os bingos que mantinham máquinas de caça-níqueis estavam abertos graças a recursos obtidos na Justiça.
A operação foi saudada como um marco no combate à corrupção no Brasil. Pela primeira vez, desembargadores foram detidos e até um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), investigado. Entre os que saíram algemados, estava o desembargador José Eduardo Carreira Alvim, do Tribunal Regional Federal (TRF), sediado no Rio de Janeiro. De acordo com a Polícia Federal, Carreira Alvim negociava sentenças por intermédio de seu genro e foi flagrado em conversas com o encarregado de levar o dinheiro dos donos de bingo aos magistrados corrompidos. Fato que tenta explicar nesta entrevista exclusiva ao site de VEJA.
Quatro anos depois, enquanto não vai a julgamento, Carreira Alvim segue a vida lecionando Direito, depois de ser aposentado por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Com tempo de sobra, resolveu contar a sua versão da história. Na noite desta terça-feira (15), ele lança no Rio o livro Operação Hurricane – Um Juiz no Olho do Furacão (Geração Editorial, 378 páginas, 39,90 reais).
Para Carreira Alvim, tudo não passou de uma armação graúda contra ele e seu colega, o desembargador Ricardo Regueira, morto meses depois da prisão. “Foi a operação da polícia que o matou”, diz. No livro, estão nomeados os responsáveis pelo seu “calvário”. A mágoa é dirigida ao atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, que autorizou a ação. Além dele, estão na mira o ex-procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, e o delegado federal Ézio Vicente da Silva, hoje aposentado.
Divulgação
Livro sai nesta terça-feira
Na posição de vítima, o ex-desembargador revela que colegas sabiam de tudo muito tempo antes. Sobre o grampo que encontrou em sua sala, diz que não chamou a polícia por crer que se tratava de obra de colegas, interessados na eleição do TRF. Nas gravações da PF, ele chegou a jurar que não seria pego por corrupção. Procurado pela reportagem, o ministro Cezar Peluso informou, por meio da assessoria de comunicação do STF, que não comenta processos em andamento.
Abaixo, os principais trechos da entrevista concedido por Carreira Alvim ao site de VEJA:
Quem o senhor acha que vai ler o seu livro, além do ministro Cezar Peluso, do ex-procurador-geral Antonio Fernando de Souza e do delegado federal Ézio Vicente da Silva? Esses três foram os personagens principais do meu calvário. Um armou, o outro tutelou e o terceiro encampou.
Mas atacar o presidente do Supremo, o Ministério Público e a Polícia Federal não complicaria ainda mais sua situação perante a Justiça? Tenho mais de quarenta anos de magistratura, com cinquenta obras publicadas. Dei palestras para quase todos os ministros do Supremo. Ele [Peluso] não pensou duas vezes antes de mandar me botar atrás das grades. Acho que não preciso ser condescendente na hora de contar o que aconteceu. Eles querem que eu prove algo que não fiz. Eles é que vão ter que correr para provar que tudo que eu digo é mentira. O Peluso mandou me grampear e foi para Buenos Aires participar de um evento organizado por mim. E pior. O tema era corrupção. Se o ministro tivesse lido os autos antes, não teria feito o que fez.
No livro, o senhor alega ser vítima de uma armação para evitar sua eleição à presidência do Tribunal Regional Federal, no Rio. Não seria demais? Havia interesse em que eu não fosse eleito presidente do Tribunal. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal estavam mancomunados. Se não fosse assim, como um dos desembargadores do Rio poderia ter dito para minha mulher que eu seria preso? Mas é só uma suposição. Aprontaram tantas contra mim que também tenho o direito de falar.
Por que a sua eleição desagradaria tanto assim aos seus adversários? Sempre dei muita causa liminar contra o poder público. O Tribunal está cheio de desembargadores que só decidem a favor do governo. São estatais. Sou professor de processo civil, sei lidar com essas regras e desagradei.
Como surgiu o seu nome no caso? Eu estava na vice-presidência do Tribunal e a Polícia Federal tinha apreendido máquinas caça-níquel, alegando o uso de componentes importados. Era minha competência decidir a esse respeito. Dei uma liminar liberando-as, mas deixando uma máquina de cada para a perícia procurar os componentes importados. Já os bingos estavam funcionando por meio de liminares expedidas por outros integrantes do TRF. Só que o procurador-geral da República disse que no Rio havia uma quadrilha para viabilizar os bingos. Mentira. Eu e o [desembargador Ricardo] Regueira não demos liminar para funcionar bingo algum. Nas duas vezes em que eu e ele participamos de votações, fomos contrários.
Mas uma decisão sua, a favor de um dos donos de bingo, foi considerada sem amparo legal. Teve uma que foi com base em jurisprudência do STJ. Quem inventou esse instrumento de cautelar em recurso a ser interposto foram o Supremo e o STJ. Eu nem sabia quem eram os donos de bingo. E nem sabia que bicheiro era dono de bingo.
O senhor sabia que estava sendo grampeado? Desconfiei de uns barulhos no telefone e descobri. Não chamei a polícia por achar que era coisa do Tribunal.
Ed Ferreira/AE
Carreira Alvim preso pela PF em 2007
Em 2007, escutas captaram seu genro Silvério Nery Júnior negociando uma liminar. Sua frase é: “A minha parte em dinheiro”. O Silvério era diretor do IPEJ [Instituto de Pesquisas e Estudos Jurídicos] e eu organizava um encontro em Buenos Aires. Liguei para um ministro do Supremo informando que uma universidade particular patrocinaria parte das passagens. O dono da agência de viagens me ligou dizendo que o dinheiro estava acabando. Disse ao meu genro que teríamos de cancelar o ministro Peçanha Martins, já que o [também ministro] Gilson Dipp iria palestrar. Meu genro ficou de conseguir mais um patrocínio para resolver tudo. Eu não poderia pedir, pois era desembargador. Como o meu genro estava recebendo as inscrições em dinheiro, falei para ele pagar as passagens. Eles editaram as gravações. E as minhas conversas com os ministros? Se aparecerem, tudo seria esclarecido.
E o tal um milhão de reais? Havia alguém, não se sabe quem, que a Polícia Federal tentou relacionar comigo. Eram pessoas em uma sala. Nesta conversa, alguém citou o meu nome, mas, como havia conversa de fundo, não se sabe nem se era mesmo alguém do tal grupo. São ouvidas as palavras “Carreira Alvim” e “um milhão de reais”. O que advogado mais faz é vender juiz. Não posso impedir ninguém de mencionar meu nome.
O senhor almoçou com um advogado dos bingueiros. Há gravações e imagens. Qual é a explicação? Eu tentava criar um curso à distância no IPEJ. Como precisaria de recursos, meu genro ficou de conseguir parceiros. Ele conversou com um ex-procurador de justiça de Minas Gerais, o Castelar Guimarães. Foi marcado um almoço no restaurante Fratelli. Lembro que em algum momento o gerente pediu para que trocássemos de mesa. Suponho que fomos para onde estava o grampo. Nisso, aparecem duas pessoas. Eram conhecidos do ex-procurador. Almoçamos. Só depois soube que Jaime Dias e Zé Renato eram ligados aos bingos. O Jaime eu conhecia de vista. Amigos de vôlei de praia pensavam que ele era advogado. Soube depois que ele ficava tomando dinheiro dos donos de bingo, dizendo que influenciava nas decisões. Mas como naquelas conversas não havia nada que a polícia quisesse, me fotografaram na saída, fazendo supor que se tratava de assunto de bingo.
E o beijo? O MPF afirmou que um dos convidados do almoço era tão íntimo meu que até me deu um beijo no rosto. Beijo no rosto não é sinal de intimidade. Na Rússia, eles trocam beijos na boca. E o ex-procurador de Minas Gerais, o Castelar Guimarães, aparece com um homem não identificado. A Federal não foi capaz de ir lá checar quem pagou a conta.
E seus colegas desembargadores? Eles toparam falar para o livro? Eu dou o nome de todos. Juízes colegas meus não tiveram coragem de ir a público dizer que eles também tinham dado decisões parecidas com as minhas. Teve até um que, quando saíram as prisões, voltou ao tribunal e reformou a própria decisão. Só não divulgo seu nome para não matá-lo do coração. É digno de pena.
Quais seriam os erros processuais que invalidariam a ação judicial contra o senhor? A denúncia não tem pé nem cabeça. O tempo deveria andar para trás para os fatos ocorrem do jeito que eles querem. A denúncia cita que no encontro no restaurante eu negociei preços. O almoço aconteceu sete meses depois de as minhas decisões terem sido cassadas. Dono de bingo pode ser tudo, menos burro. Quem pagaria propina por uma decisão que já tinha sido dada e cassada por uma das turmas do TRF?
Se o Judiciário é assim, por que o senhor não abandonou a carreira antes? Queria contribuir. Consegui fazer justiça no tribunal e não me arrependo. O problema é a inveja. E não é só contra mim. Como os tribunais possuem uma quantidade de vagas muito limitada, a coisa que juiz mais gosta é ver o outro cair.
Qual a opinião do senhor sobre o uso de escutas telefônicas como principal ferramenta para obtenção de provas em uma investigação? Antes, eu era favorável. Depois que vi como isso pode ser deturpado, acho uma irresponsabilidade. Quando a fita foi divulgada, falaram que o sistema falhou. Bastaria mostrar a gravação original.
O senhor chegou a ser alvo de alguma tentativa de suborno? Nunca. Julguei o Caso Projac, da Rede Globo. Soube que o advogado da outra parte receberia vinte milhões de dólares se eu tivesse decidido contra a Globo. Eles até alegaram favorecimento. Se eu fosse corrupto, não iria me corromper quando havia muito mais dinheiro envolvido?
Em casos de corrupção envolvendo magistrados, a aposentadoria compulsória, como a concedida ao senhor, é um ato correto? Fui aposentado pelo Conselho Nacional de Justiça. Aposentadoria de magistrado não é prêmio, nem algo injusto que afete o Tesouro. Contribui durante quarenta anos. Não foi uma graça concedida pelo estado, mas um benefício retributivo. Desconto um valor para a Previdência Social todos os meses. Injusto seria perder esse direito.
O senhor já jogou a dinheiro? Já fui a eventos na Europa e em Punta Del Este, onde vi magistrados jogando nas maquininhas. Não vejo problema, desde que esteja legalizado. Até faço uma fé na raspadinha. Enquanto me investigavam, fui a um bingo perto de casa jantar com um amigo e gastei uns quarenta ou cinquenta reais em jogo. Usaram isso para dizer que eu era frequentador.
Como anda o processo contra o senhor? Não anda. Receberam a denúncia e tudo está parado. Quando o Regueira morreu, em 2007, extinguiram o seu processo. Foi como se ele tivesse morrido culpado. No meu caso, não houve julgamento.
O senhor não teme ser processado por causa do livro? Depois de tudo que aconteceu comigo, não tenho mais medo. Se fui processado por algo que não fiz, agora pelo menos serei processado por uma verdade.
Fui colega do Carreira Alvim na Procuradoria da República.Fomos aprovados no primeiro concurso público para o provimento de vagas no cargo de Procurador. Exercemos o cargo de Procurador por vários anos em Estados diferentes. Em 1986 nos encontramos em Brasília por ocasião das provas orais do concurso para o provimento do cargo de juiz federal. Novamente, fomos aprovados e tomamos posse no cargo de juiz federal no mesmo dia. Considero-me sua amiga,ainda que com ele tenha tido pouco convívio.Sempre admirei o brilho de sua inteligência e sua correção. Lí o livro que escreveu sobre o furacão em que foi envolvido e gostaria de prestar minha inteira solidariedade.