A literatura está ao alcance de todos, mas nem todos a alcançam
Quando foi expulsa do útero de sua mãe, Nina sentiu-se completamente desprotegida, solta num mundo que se lhe apresentou hostil e no qual não teria chance alguma de sobreviver sozinha.
Por Jeosafá Fernandez Gonçalves*
Até aquele momento guardada no ninho morno e aconchegante, protegida dos ruídos doloridos, da luz ofensiva e do ar frio, agora ela teria, além de enfrentar esses desconfortos, que respirar e se alimentar por conta própria, pois, cortado o cordão umbilical, sua mãe não lhe deixou outra alternativa. Essas foram as primeiras impressões que se gravaram no corpo e no inconsciente de Nina tão logo ela se separou da mãe.
Tomado o primeiro banho, Nina foi levada à mãe, que a conchegou no colo nu e a fez sentir o calor morno dos seios inchados de colostro – e depois de leite. Nina sentiu-se confortável, olhou para cima e viu de maneira embaçada uma imagem. Essa imagem lhe falava em voz doce. Em seu corpo, Nina sentiu o toque agradável das mãos e dos braços maternos. A imagem embaçada do rosto, aquela voz, aquele calor, aquele toque foram das primeiras imagens visuais, sonoras e táteis impressas no corpo e na psique de Nina – e eram imagens boas, afinal, o mundo do lado de fora se tornava menos hostil em face desse acolhimento amoroso e confortável.
Alojada no colo, agora a mãe a leva ao seio. Porém Nina não sabe o que fazer, pois até a pouco se alimentava pelo cordão umbilical. A mãe insiste, besuntando os lábios da filha com o líquido espeço que vaza da mama. Ainda não sabe o que é sabor (imagem gustativa), mas Nina sente um cheiro que, ao se associar com as imagens agradáveis anteriores (o rosto a inspirar segurança, a voz doce, o calor e o toque prazerosos), ganha um sinal de positivo em suas impressões iniciais do mundo.
Espera! Esse cheiro vem desse líquido espesso… Será que é bom?
Depois de várias tentativas, Nina descobre o que fazer: sugar. O líquido entrando pela boca, descendo pelo aparelho digestivo dá um grande prazer. A dor na barriga desaparece, a irritação vai embora e, enquanto suga o colostro, Nina olha para cima e, em pouco tempo, não no mesmo dia, talvez nem nos próximos, vai enxergando mais nitidamente aquele rosto amoroso, aqueles olhos doces e associando-os ao imenso prazer de mamar e… cochilar deliciosamente.
Ao longo de sua vida, bilhões de imagens visuais, sonoras, táteis, palatais, olfativas (agradáveis e desagradáveis; prazerosas ou profundamente traumáticas) se imprimirão no corpo e na psique de Nina. Muitas dessas “impressões” físicas e psíquicas ficarão, modo de dizer, à flor da pele, outras serão esquecidas e ficarão depositadas, em estado latente, em seu inconsciente. Às vezes aparecerão em sonhos ou pesadelos, às vezes voltarão à tona ao acaso na forma de lembrança: um cheiro que remete a uma situação perdida no tempo; um pôr de sol que a fará recuar anos no passado e experimentar com a mesma intensidade de criança uma sensação associada a uma pessoa amada e, miséria das misérias, perdida para sempre.
A verdade é que Nina enlouqueceria caso se lembrasse de tudo que viveu, ou caso sentisse tudo a que seu corpo e sua emoção foram expostos, sem o amortecimento do tempo. Noutras palavras, sem o recalque de um mundo de sensações e impressões físicas e psicológicas, Nina não se teria convertido em menina, moça e mulher.
Sem entrar em muitos meandros que cabem mais aos psicólogos do que a escritores ou professores de língua e literatura, meu caso, o que importa aqui saber é que Nina, como todos nós, é uma parte consciência, outra parte mistério (inconsciência). Com certeza, a parte maior de nós e dela é a que fica encoberta, recalcada, trancada nos porões ou sótãos da nossa psicologia – e dela.
Gosto de empregar a alegoria do poço: nosso inconsciente é um poço cego, profundíssimo, escuro, mas cheio de água – doce ou podre, potável ou infecciosa, clara ou cheia de lodo, plácida ou tormentosa.
Ao longo da vida, nossas experiências convertidas de imagens em sensações (de dor ou prazer, gozo ou frustração, euforia ou medo, entre milhões de outras) escorrem pelas fendas do chão duro da nossa consciência e vão se depositar nos “lençóis freáticos” do nosso inconsciente, de que desconhecemos a profundidade e extensão.
Ao abrir um poço para trazer de volta à tona um pouco dessa água, fizemos uma parte do que é possível para resgatar uma mísera fração de tudo que vivemos e que ficou impresso em nossa própria profundeza.
Porém abrir esse poço é só metade do trabalho: é preciso ter às mãos ao menos uma corda e um balde, para, com a frequência necessária à nossa sanidade, atirá-lo ao fundo e com ele puxar um tanto dessa água clara ou turva, límpida ou poluída, potável ou venenosa.
Esse poço, essa corda e esse balde, são a linguagem verbal.
É por meio dela que temos a possibilidade de tornar consciente, por meio da conversão de imagens e símbolos em palavras, aquilo que, escorrendo pelas fendas de nossa consciência ao longo dos anos, foi se depositando no fundo desse poço cego que é o nosso inconsciente.
Se não desenvolvemos essa habilidade de ir ao poço do nosso inconsciente munidos ao menos dessa corda e desse balde, manifestações desse inconsciente um belo dia saltarão acidentalmente pelas mesmas fendas de nossa psicologia pelas quais desceram na forma de pesadelos – quando dormimos – ou na forma de sintomas (mal-estar aparentemente sem origem, angústia, depressão – ou mesmos sintomas físicos ou psíquicos compulsivos, que requererão auxílio de profissional especializado).
E onde é que a literatura entre nessa conversa?
A literatura (ficção ou poesia), linguagem em potência máxima, é por excelência o kit perfeito para furar poços, com corda, balde e sarilho junto. Não é à toa que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, foi buscar na literatura clássica grega os modelos para o desenvolvimento de sua ciência.
A literatura é um grande laboratório da vida. Todas as possibilidades individuas e coletivas, psicológicas e sociais, íntimas e históricas têm nela livre curso. Nossos medos e fantasmas, nossa coragem e covardia, nossa capacidade para a generosidade ou para a monstruosidade, para o amor e o ódio, a lealdade ou a traição, nossa feiura e nossa beleza, nossos sonhos e nossos pesadelos estão nela esperando por nós ou esperando que soltemos ou projetemos nela nossos anjos e demônios.
Não é preciso se expor à violência para se experimentar todo seu potencial de destruição: há poemas, peças teatrais, romances, contos que nos fornecem farto material para sentirmos e refletirmos sobre ela.
Ainda que por uma razão absolutamente prática, a literatura permite que o indivíduo antecipe consequências de situações na vida real similares àquelas representadas literariamente. Não é preciso se envolver com pessoas cruéis para se saber do que elas são capazes: a literatura universal está repleta de personagens cujas características foram extraídas de pessoas existidas, existentes e possíveis de virem a existir no futuro.
A literatura está repleta de maníacos, de gente sórdida, repulsiva, interesseira, abjeta, capaz de tudo, inclusive de impor os piores sofrimentos a outras pessoas, para atingirem seus objetivos ou simplesmente para obter prazer. Seria ótimo se essas representações não tivessem referência na vida real. Mas já que têm, sempre é bom conhecê-las por meio dos experimentos que a literatura oferece – até porque o monstro pode ser a gente mesmo.
Do mesmo modo, a literatura universal transborda de personagens os mais generosos, corajosos, lutadores, solidários, éticos, bonitos moralmente (e o Corcunda de Notre Dame não é exemplo solitário de feio-lindo) – e também os conflituosos, meio médicos, meio monstros.
Ao nos habilitar em converter imagens e símbolos em palavras e vice-versa, a literatura nos entrega de bandeja os instrumentos para que penetremos nos estágios mais profundos de nossa condição humana e de nossos próprios inconscientes de indivíduos.
Assim fica explicado por que tantos dizem não gostar de literatura: não conseguem converter imagens e símbolos em palavras, e muito menos o processo inverso: converter palavras em imagens e símbolos, que por sua vez se relacionam complexamente com sensações, sentimentos, lembranças, ideias e conceitos. Ou seja, não conseguem mobilizar seu infinito repertório de imagens simbólicas (visuais, auditivas, táteis, palatais, olfativas) acumulado em si mesmos ao longo dos anos. Estão sem poço, sem corda e sem balde para puxar a água de suas próprias profundezas.
Como ninguém gosta de sofrer, ao não se extrair das palavras nada que dê prazer, é comum a rejeição à literatura sob o argumento: “não gosto”, que na verdade quer dizer “não consigo”: não consigo converter palavras em imagens visuais, auditivas, palatais, olfativas, táteis, conceituais… – e, por conseguinte, “não consigo sentir nada”.
Porém, ao rejeitar a literatura, ainda que por uma culpa que só não lhe cabe em parte, o indivíduo estará a léguas da humanidade e de si mesmo – e a compreensão que terá dela e de si será sempre, na melhor das hipóteses, infantil e rasa.
Nina é nome que eu inventei para simbolizar todas as pessoas que, por meio da leitura literária, descobriram o prazer em jogar o balde bem fundo dentro de si e puxar desse fundo sem fundo um tanto de mundo e outro tanto de si. A literatura é sua terapeuta, seu laboratório de vida e sonhos. Por meio dela eles podem viajar a mundos passados, contemporâneos e futuros, e também imaginar e sentir o delicioso conforto do seio, do leite e mesmo do útero materno per omnia saeculum seculorum.
* Jeosafá Fernandez Gonçalves, escritor, é doutor em Letras e pesquisador colaborador do Departamento de História da USP
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