A literatura não descartável
Com livros encontrados no lixo, um ex-menino de rua de Curitiba montou uma biblioteca que aceita até os descalços e malvestidos
O porteiro Francislei Luiz Santos, de Curitiba, é um bom leitor. Desde pequeno, usa os livros como passatempo e forma de adquirir cultura. Ele gosta especialmente de livros sobre esportes. Como o dinheiro não dá para comprar as novidades, Fran-cislei conta com as bibliotecas públicas a seu alcance. Há três meses, ele descobriu uma nova fonte para renovar seu estoque literário. É uma biblioteca comunitária na Vila das Torres, bairro pobre a 20 minutos de ônibus da casa dele. Francislei se afeiçoou ao lugar. “O ambiente lá é mais acolhedor que o das bibliotecas públicas municipais, onde sempre tem alguém vigi-ando”, diz. Detalhe: boa parte dos livros da biblioteca saiu do lixo.
O responsável por salvar as obras e dar-lhes um destino mais nobre foi o palhaço Carlos Roberto Telles. Ele diz que sua inicia-tiva se inspirou em um trauma da infância. Aos 7 anos, fugiu de casa para viver nas ruas. Passou a consumir drogas e cometer assaltos. Para se proteger do frio e das crianças mais velhas, buscava abrigo na Biblioteca Municipal de Curitiba. “Como estava sujo e malvestido, era sempre barrado pelos seguranças”, diz.
O destino de Telles mudou quando foi pego pela polícia e levado para um abrigo de menores. Lá começou a ter aulas de teatro. Virou o palhaço Chameguinho, personagem que interpreta até hoje nas ruas. Com o dinheiro das apresentações, Tel-les comprou uma casa na Vila das Torres. Um dia, observou catadores de papel da comunidade desmanchando livros encon-trados no lixo. Eles venderiam o papel para reciclagem. Telles teve uma ideia melhor: montar uma biblioteca diferente da Municipal, onde qualquer um poderia entrar, mesmo sujo ou malvestido.
O primeiro passo foi convencer os catadores que doar os livros era uma opção mais produtiva que destruí-los para vender o papel. Segundo Telles, essa foi a tarefa mais difícil. Aos poucos, vários deles começaram a doar os livros que encontravam. A biblioteca foi instalada em 2009, num prédio alugado. Para mantê-la, Telles conta com doações dos frequentadores. São cerca de 2 mil cadastrados.
Iniciativas como a de Telles contribuem para disseminar o hábito da leitura no Brasil. “Atitudes como essa só trazem bene-fícios”, afirma Galeno Amorim, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. “O governo tem a responsa-bilidade maior de criar políticas que desenvolvam a leitura, mas a família e o cidadão também têm um papel importante nessa batalha.”
Quando falaem batalha, Galenonão exagera. Segundo o Ministério da Educação, só 23% das 149.968 escolas públicas de ensino fundamental têm uma biblioteca. Uma pesquisa realizada em 2007 pelo Instituto Pró-Livro revelou que três em cada quatro brasileiros não frequentam bibliotecas. E 45% deles não tinham colocado a mão em nenhum livro em três meses.
Ao salvar os livros do lixo, Telles, sem querer, reprisou a iniciativa de Sebastião Carlos dos Santos, líder da Associação dos Catadores do Aterro Sanitário de Jardim Gramacho. Sebastião encontrou no meio do lixo o livro O príncipe, de Maquiavel. Intrigado com o título, resolveu ler. A partir desse dia, passou a levar para casa todos os livros que encontrava. Sebastião ficou famoso quando sua história foi contada pelo documentário Lixo extraordinário, iniciativa do artista plástico Vik Muniz.
Parte do dinheiro proveniente do filme foi para a associação dos catadores de lixo de Jardim Gramacho. Assim como a ideia de Sebastião, o projeto de Telles rendeu frutos. Com a ajuda da prefeitura, ele criou um programa para exibir um filme uma vez por semana num telão ao ar livre na Vila das Torres e organiza apresentações de dança e música para a comunidade do bairro. “Minha intenção é levar cultura para aqueles que não têm acesso a ela, assim como um dia eu também não tive”, diz.
http://revistaepoca.globo.com/vida/noticia/2011/10/literatura-nao-descartavel.html