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 A outra vida do tio Enéas por Mika Lins - Geração Editorial Geração Editorial

out 25, 2011
Editora Leitura

A outra vida do tio Enéas por Mika Lins

ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A outra vida do tio Enéas

São Paulo, anos 70

MIKA LINS

“TIO ENÉAS vai chegar para ficar uns dias”, minha mãe avisou.
Tio Enéas era um homem muito alto e, na minha memória, aparece com um terno escuro, a camisa branca, o cabelo penteado para trás e um bigodinho engraçado. Para uma criança, filha única de pais que trabalham fora, qualquer hóspede era motivo de alegria. Ainda mais um hóspede como ele, sempre tão atencioso.
Não lembro quantos dias ele ficou naquela última vez, mas me recordo de, sentada no chão, ao lado da cadeira em que ele passava as tardes, observar com atenção sua leitura do jornal. Era um ritual meticuloso. A cada página virada, ele passava os dedos nos dentes -não nos lábios, nos dentes, mesmo- para molhá-los e virar a próxima página. Um dia, ele foi embora, e foi a última vez que o vi. Eu tinha cinco ou seis anos.
Algum tempo depois, um portador trouxe para minha mãe um colar de cristal da extinta Tchecoslováquia, que guardamos até hoje. Junto, veio um brinquedo para mim, um sapo de lata movido a corda; este se perdeu no tempo. Eram presentes do tio Enéas.
Como ele nunca mais aparecia para ficar conosco, perguntei à minha mãe quando voltaríamos a vê-lo. Ela desconversou. Foi me contar a verdade só anos depois, quando eu já era adolescente.
Tio Enéas era, na verdade, David Capistrano da Costa, membro do PCB, amigo de longa data do meu pai, naqueles tempos também ligado ao partido. Minha mãe me explicou que, àquela altura, David engrossava a lista de desaparecidos da ditadura militar. Durante a minha infância ele ainda vivia na clandestinidade, e meu pai era encarregado não só de escondê-lo como de transportá-lo sempre que vinha a São Paulo.
David Capistrano era um homem incrível. Quando o conheceu, nos anos 1960, no Recife, meu pai tinha uns 18 anos e já militava no PCB; trabalhava no governo Miguel Arraes. David tinha história. Nascido em 1913, no Ceará, participou do levante de 1935, quando era sargento da Aeronáutica, e foi condenado à prisão pelo Estado Novo. Lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa durante a ocupação nazista. Em 1947, já de volta ao Brasil, foi eleito deputado estadual por Pernambuco, onde também dirigiu os jornais “A Hora” e “Folha do Povo”. Com a ditadura, caiu na clandestinidade até partir para a Tchecoslováquia, no início dos anos 70.
Meu pai amava aquele homem pelo espírito de luta, pela posição ideológica e pela humanidade. Minha mãe também -tanto que escondia David em nossa casa mesmo não sendo mais casada com o meu pai e tendo a perfeita noção do risco que corríamos.
Em 1974, aos 61 anos, David voltou escondido do exílio. Ao passar pela fronteira em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, foi preso pelos agentes do Exército e logo dado como desaparecido.
Em 2008, a jornalista Taís Morais publicou o livro “Sem Vestígios – Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira”, escrito com base em anotações enviadas a ela de forma anônima pelo agente de codinome Ivan Carioca. Nelas, Carioca relata com detalhes o fim trágico de David, torturado, morto e esquartejado, em Petrópolis.
Carioca descreve a visão do corpo daquele homem enorme e doce que conheci: “Um tronco, dividido ao meio. As costelas de Capistrano pendiam ao teto, e ele, reduzido aos pedaços, como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue”.
Depois de ler, com tristeza, perguntei delicadamente a meu pai se gostaria de ler. Respondeu que sim -em 2008, ele se tratava de um câncer de pulmão diagnosticado no ano anterior. Meu pai morreu neste último dia 5 de agosto, mas não sem saber como partiu o amigo a quem homenageara dando a meu irmão o nome de David Lins. Para minha mãe, o colar que ganhou de David Capistrano é a única joia da família e o presente mais significativo que recebeu.
Ao lembrar essa história, além da saudade do meu pai, tenho a sensação desagradável de que talvez crimes da ditadura brasileira nunca sejam punidos. E penso que, por trás de cada movimento histórico, revolucionário ou não, há uma partícula delicada, talvez banal, de cada homem, que se mantém pela lembrança de uma garota com seu brinquedo de lata ou no brilho de um colar de cristal.

Texto publicado na Folha de S.Paulo em 23/10/2011 – Ilustríssima

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