"Cacilda Becker, o maior mito
dos palcos nacionais, tem sido também um grande
enigma para a maioria dos brasileiros que cresceram
de fins dos anos 60 para cá. Por definição, mitos
são figuras exemplares, e são exemplares pelo lastro
de história que deixaram. Cacilda não se tornou
mito apenas por ter morrido cedo (com 48 anos) e
em circunstâncias particularmente dramáticas - depois
de ter sofrido um derrame cerebral no intervalo
de uma apresentação vespertina, para secundaristas,
da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. Quando
se conhece melhor sua trajetória de vida, compreende-se
que, além de ter sido uma artista dotada, de fato,
de especial talento e carisma, Cacilda vivenciou
um período muito particular de afirmação do teatro
brasileiro, de tal modo que sua história pessoal
acabou por se fundir e confundir - usando palavras
de José Celso Martinez Corrêa - com a própria história
do teatro moderno brasileiro. Isso, num país como
o Brasil, equivale a dizer que ela representa quase
tudo, já que o que houve antes foi muito pouco ou
- para não sermos injustos - ainda muito embrionário.
Como ela chegou lá é que são elas.
A moça de infância pobre que queria ser bailarina,
que integrou pela primeira vez um elenco teatral
sem nunca ter assistido a uma peça e, ainda iniciante,
ouviu do grande diretor Ziembinski que "nunca seria
uma atriz" tornou-se a estrela maior do teatro que
renovou os palcos brasileiros nos anos 50. Estrela
estigmatizada no início dos 60 como símbolo do teatro
ultrapassado, que na maturidade foi a líder inconteste
da classe teatral e (já então) o mito. Cacilda nasceu
em 1921, numa família sem nenhum histórico artístico
O casamento de Alzira Becker com Edmundo Iaconis
durou até 1930, época em que vivia na capital com
as filhas Cacilda, Dirce e Cleyde. Após o rompimento,
Alzira retornou com as filhas para o interior e
lutou arduamente pela sobrevivência.
No ano seguinte, fixam-se em Santos, litoral paulista,
cidade rica que oferece às irmãs a possibilidade
de uma boa formação. Adolescente, seu corpo se formou
gracioso, apesar das pernas finas; revelou um sorriso
largo, desde cedo redesenhado com forte batom vermelho,
mas seu "xodó" eram os longos cabelos cacheados
cor-de-avelã. Puxava já um séquito de admiradores,
mas, sendo pobre e filha de pais separados, logo
conheceu a discriminação e passou a ser evitada
nas rodas freqüentadas por "moças de família". Para
compensar, encontrou acolhida carinhosa no meio
intelectual e boêmio e ali logo fez amizades duradouras,
entre elas o jovem escritor Miroel Silveira. São
esses amigos que a levaram a disputar um concurso
de beleza, fizeram dela capa de revistas locais
e a ajudaram a promover duas apresentações de dança.
Contudo, logo ficou claro que sua carreira de bailarina
não tinha futuro. Aos 20 anos, já com um diploma
de normalista nas mãos, ela ainda não tinha nenhuma
formação técnica. Foi Miroel quem viu no teatro
um escoadouro para aquele talento e a indicou, em
1941, para uma substituição na montagem amadora
do Teatro do Estudante do Brasil, no Rio, da peça
3.200 Metros de Altitude, de Julien Luchaire. Sem
nunca antes ter nem mesmo estado na platéia de um
espetáculo teatral, Cacilda seguiu para a capital
federal e se instalou numa pensão por dois meses.
Estréia ensaiada por Ester Leão, no papel da "coquete"
Zizi, projetou-se logo: "Vocês verão na Zizi a maior
ladra de homens. Dona Ester vive querendo mais coqueteria,
mas é impossível. Estejam certas que vou triunfar.
Em primeiro lugar, a minha figura vai ser abafativa,
pois inegavelmente eu tenho mais figura que qualquer
das colegas. E, para dizer a verdade, sou eu quem
tem mais talento", escreveu à mãe.
Intuitiva, ela encontrou os caminhos certos por
vias tortas. Na volta a São Paulo, empregou-se como
caixa de uma seguradora, mas foi logo demitida por
"incompatibilidade com o trabalho". Então, ingressou
no rádio, por intermédio de Tito Fleury, jovem jornalista.
Trabalhou como locutora e radioatriz na Cultura,
depois na Tupi-Difusora e, paralelamente, foi convidada
a integrar o Grupo Universitário de Teatro (GUT),
outro elenco amador ambicioso, criado e dirigido
por Decio de Almeida Prado - ainda um crítico iniciante.
Cacilda participou de um espetáculo composto por
peças curtas de Gil Vicente, Martins Pena e Mário
Neme. Sua atuação de novo impressiona, particularmente
como a Brizida Vaz do Auto da Barca do Inferno,
apesar de ainda não ter plena consciência do trabalho
que fazia.
Em 1944, ela partiu para uma nova experiência teatral
com a Cia. Bibi Ferreira, no Rio, também levada
por Miroel Silveira. Mas não encontrou espaço para
se expor - a companhia já tinha sua estrela. Uma
passagem, porém, é bastante reveladora do domínio
de palco que Cacilda já havia adquirido. Bibi cai
doente, e Cacilda se vê obrigada a substituí-la
às pressas: "Representava-se É Proibido Suicidar-se
na Primavera, as entradas estavam vendidas, e Bibi
não poderia de forma alguma representar; (...) à
noite, depois de passar rapidamente a peça, com
o auxílio dos colegas, para conhecer a marcação,
e de ler sozinha várias vezes suas cenas, Cacilda
estreou pela terceira vez no Rio. Estava nervosa
e o papel não era sopa. Ela porém é de circo e com
o auxílio de vários cigarros, que acendia num momento
oportuno para ouvir o ponto, sem que a platéia percebesse,
com um jogo de cena extremamente natural, Cacilda
agradou integralmente à platéia", noticiou a Revista
do Rádio, em novembro de 1944.
Isso aconteceu apenas alguns meses depois da histórica
apresentação pelo grupo amador Os Comediantes, no
Rio, da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues,
dirigida pelo polonês Zibigniew Marian Ziembinski,
então recém-chegado. Estava fundado o teatro moderno
brasileiro, e Cacilda começava a entender o teatro
como arte. Traçou-se o destino: após romper com
Bibi, ela fez seu primeiro filme pela Atlântida,
o melodrama Luz dos Meus Olhos, que não teve boa
acolhida. Em seguida, outra aventura teatral, esta
de grande significado, porque Cacilda enfrentou
pela primeira vez diretores de peso - Ziembinski
e Zygmunt Turkow. Juntamente com Brutos Pedreira,
Miroel (sempre ele), no início de 1947, passou a
empresariar Os Comediantes, estreando com a montagem,
no Rio, de Desejo, de Eugene O'Neill. No elenco,
Maria Della Costa, Sandro Polonio, Jardel Filho,
Margarida Rey e outros. Cacilda, já oficialmente
casada com Tito Fleury, integrou o grupo com o marido
a partir da remontagem de Vestido de Noiva, em São
Paulo, e permaneceu nele até um amargo fim, em setembro
do mesmo ano, sem dinheiro e rompida com Miroel.
Dessa fase, uma passagem curiosa foi a sentença
que, certa vez, recebeu de Zimba, certa noite, no
Café Petrônio de Copacabana, onde se reunia o grupo
dos Comediantes: "Estávamos Tito, eu e outros que
atuavam conosco, que não lembro agora. E estava
o Ziembinski. Eu não comia o bife que ele queria
e, talvez, porque eu não comesse esse bife, que
deveria comer, ou porque chegasse atrasada ao ensaio,
ele me olhou profundamente e disse: 'Você nunca
vai ser uma atriz'. Isso cala fundo e eu fiquei
atemorizada. Mas foi justamente esse homem que ajudou
a me tornar uma atriz. E talvez tenha sido justamente
esse um dos botões que ele tenha apertado, para
me estimular", recordou Cacilda em entrevista à
Rádio Ministério da Educação e Cultura, em 1966.
A escalada de Cacilda ao estrelato só se dá com
a criação do Teatro Brasileiro de Comédias (TBC),
em 1948, pelo empresário Franco Zampari. Inicialmente,
o TBC é criado com o propósito de abrigar as diversas
agremiações amadoras surgidas no decorrer dos 40
em São Paulo (entre as quais o GUT) que respondiam
à ansiedade das elites por um teatro mais elaborado.
Cacilda teve papel relevante na profissionalização
da companhia.
Rapidamente Zampari percebeu a inviabilidade de
manter o teatro apenas com amadores descompromissados
e, estimulado pelo cenógrafo Aldo Calvo, importou
um diretor, o italiano Adolfo Celi, a trabalho na
Argentina. Em seguida, fixou um elenco permanente
do qual Cacilda foi a primeira contratada.
Assim, o TBC entrou definitivamente na era do teatro
moderno. Da montagem de Nick-Bar, de Saroyan, até
a saída de Cacilda, em 1958, a companhia viveu um
período de ouro; como se o atraso da cena brasileira
tivesse de ser compensado num tempo recorde - cinqüenta
anos em cinco, para usar um slogan da época. Os
grandes autores modernos internacionais sobem todos
à cena de uma só vez (Sartre, Tennessee Williams,
Pirandello, Anouilh, etc.), e também os clássicos
- como Goldoni, Sófocles, Alexandre Dumas Filho,
etc. -, além, é claro, de muito bulevar. Nesse contexto,
Cacilda realizou seu sonho de ser primeira atriz.
Mais que apenas uma estrela, Cacilda exercitou seu
talento de intérprete com rigor e seriedade, como
testemunham todos os seus colegas; dirigida por
Celi - com quem viveu um romance por dois anos -,
Luciano Salce, Ruggero Jacobbi e Ziembinski, atingiu
o ápice e se tornou uma unanimidade.
Em 1954, protagonizou seu segundo e último filme,
Floradas na Serra, pela Vera Cruz, companhia cinematográfica
irmã do TBC. Ainda hoje vigoroso, seu trabalho sobrevive
ao texto lacrimogêneo, provando que não havia nada
de anticinematográfico em Cacilda. Em 1958, quando
se liga ao jovem ator gaúcho Walmor Chagas, nove
anos mais jovem, e cria o Teatro Cacilda Becker
(TCB), outro movimento de renovação ronda o teatro
brasileiro, com a criação do Teatro de Arena e,
em seguida, do Grupo Oficina. Esses jovens não apenas
propõem novas estéticas, mas principalmente um teatro
brasileiro interpretado, escrito e dirigido por
brasileiros. E, como acontece a cada ciclo, a nova
geração nega a anterior, no caso, o TBC - berço
desses mesmos rebeldes -, que passa a ser tachado
de teatro "estrangeiro". Cacilda apoiou o Arena
e, em especial, o Oficina, mas ainda assim carregou
por um período o estigma de "atriz colonizada com
sotaque ítalo-polono-brasileiro".
A partir de 1964, uma nova virada acontece no país,
com a instalação do governo militar. Em meio a uma
ditadura intolerante e terrorista, Cacilda surgiu
como uma voz respeitada e corajosa denunciando a
censura e defendendo a classe teatral. Assumiu,
então, o papel de grande mãe e declarou que "todos
os teatros são meus teatros", ou ainda que: "(...)
Depois de tantos anos de teatro, eu me encontro
um pouco em muitos colegas meus e tenho um prazer
enorme quando vejo que eles vencem, que eles realmente
se tornaram atores. É uma vaidade, uma falta de
modéstia. Mas eu não sou mais só eu. Eu acho que
eu sou um pouco mistura com o teatro".
Madura e consagrada, já não lhe interessavam mais
as glórias do estrelato. "Foram 25 anos, não somente
de sucessos, mas de alguns insucessos bastante dolorosos
e alguns momentos bastante difíceis de ser superados;
mas que finalmente foram superados, me dando em
troca uma experiência e uma serenidade (...) que
significam um passo para a frente e, ainda, um sinal
de evolução, apesar da minha idade", declarou em
1966. Nessas alturas já era, como dizia, "um instrumento
afinado". Acabava de encerrar a temporada de Quem
Tem Medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, em
um papel que lhe rendeu fartos elogios, assim como
acontecera com a Clara de A Visita da Velha Senhora,
de Dürrenmatt, 1962, e aconteceria com Estragon,
de Esperando Godot, peça de Samuel Beckett com a
qual se despediu dos palcos. Ela ainda vestia o
terno roto do personagem, quando, numa tarde de
maio de 1969, foi levada às pressas ao Hospital
São Luiz, em São Paulo, sob os olhos assustados
de uma platéia estudantil. Foi sua última cena.
Como seria possível uma mulher com uma história
dessas não ter se tornado um mito?"
Extraído
da revista Bravo! nº 12, de setembro de
1998