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 Caixa - Laura Albert - Geração Editorial Geração Editorial


Caixa – Laura Albert

9788581300627

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Caixa – Laura Albert
Autora: Laura Albert
Categoria: Romance
Formato 16x23x4cm
Peso: 835 gr
ISBN: 9788581300627
R$ 49,90
Editora: Geração

Sinopse:

Esta caixa contém os dois livros de JT Leroy, Maldito Coração e Sarah, escritos por Laura Albert, e material exclusivo sobre o caso da escritora.

O caso intrigante da escritora Laura Albert, que, sob o pseudônimo de J.T. LeRoy, publicou, no início dos anos 2000, um livro “autobiográfico” no qual se apresentava como um homem  andrógino vítima de abuso sexual infantil, prostituição e drogas. O espetáculo acompanha a saga da imprensa na tentativa de desmascarar o escritor, que enganou meio mundo e conquistou uma legião de fãs famosos — Madonna, Gus Van Sant e Bono Vox, do U2, entre outros — além de convites para eventos, como a Flip de 2005.

Entrevista com a autora:

Quando você nasceu?
Em 2 de novembro de 1965. Nasci com uma febre. Minha mãe ficou três dias em trabalho de parto no Hospital do Brooklyn e quase morreu. Era dia de eleição e por minha causa minha mãe não pôde ir votar. Também era Dia de Finados.

O que seus pais faziam?
Minha mãe escrevia musicais e meu pai era assistente principal. Meus pais eram filhos de imigrantes judeus. Não tínhamos dinheiro, morávamos em um conjunto habitacional para pessoas de classe média baixa no morro do Brooklyn.

Onde as peças de sua mãe eram produzidas?
Ela as montava no nosso prédio e eu fazia meus espetáculos lá também. Ela me sentava ao piano, eu cantava melodias para ela, ela as transcrevia e então eu escrevia as letras. Se não havia público para assistir, eu ia ao banheiro e fazia meus próprios shows na frente do espelho. Eu posicionava os espelhos para que um refletisse o outro. Mas eu queria um público – não queria ficar sozinha naquilo – e na escola eu soltava as personagens. Eu fazia monólogos. Encontrava diferentes cenários, diferentes sotaques, fazia imitações, que é justamente como se aprende a escrever. Primeiro você copia um escritor, e depois o material passa por uma mutação e se torna seu.

Quantos anos você tinha quando começou a escrever seus próprios espetáculos?
Até onde consigo me lembrar, eu sempre tive histórias. Elas costumavam ser sobre garotos que se metiam em encrencas. Eu repassava essas histórias para mim mesma todas as noites quando me deitava. Era como ver um filme. Eu rebobinava um pouquinho, depois rodava e via novamente até conseguir cair no sono. Às vezes alguma história me mantinha acordada e eu começava a chorar porque não sabia como ela iria acabar.

Por que você acha que os seus protagonistas eram meninos?
Todas as histórias com que eu me deparava eram sobre meninos. As personagens que podiam viver aventuras e conseguir redenção eram meninos, de Huck Finn a Tom Sawyer, de Oliver Twist a Peter Pan. O que eram as meninas? Elas eram princesas. E eu sabia que aquela não era a minha história. Eu não era uma criança bonitinha.

Você disse que sua mãe a ajudava a compor seus espetáculos. E o seu pai?
Meu pai trabalhava muito e não ficava em casa. Mas ele me levava até Bushwick, àquela loja que vendia revistas em quadrinhos antigas. Eu era obcecada por aquelas histórias em quadrinhos dos anos quarenta. Eu adorava o Super-Homem, mas eu tinha loucura mesmo era pelo Aquaman. Havia no Aquaman uma coisa vulnerável e um pouco gay que eu havia percebido. Eu me recordo de estar sentada no ônibus quando estava na quinta série e todas as outras meninas falavam de garotos e eu só conseguia pensar: Aquaman.

Você tinha muitos amigos na escola, crianças da mesma idade que você?
Eu era amiga de todos os caras nerds. E as crianças populares gostava de mim porque eu as fazia rir. Eu inventava histórias engraçadas e era a melhor para passar trotes no telefone. Na sexta e na sétima séries as meninas começaram a ter quedas sérias pelos garotos, e a gente começou a telefonar para eles. Tinha um cara de quem todas as meninas gostavam muito, mas ninguém conseguia falar com ele por telefone porque todas simplesmente ficavam dando risadinhas. Então um dia, com as outras meninas ouvindo, eu liguei para ele imitando um sotaque sueco, e ele ficou caidinho. Eu continuei ligando para ele – e as outras meninas não sabiam disso. Eu inventei um personagem completo, Katrin. Fui até a biblioteca para pesquisar sobre a Suécia, estudei sueco para ter certeza que meu sotaque estava legal. Katrin estava morando com Laura, comigo, mas os pais dela eram muito rigorosos e ela não podia sair de casa. Então ninguém nunca a via. Descobri que tinha essa habilidade com o telefone – e eu acho que muitas mulheres descobrem isso – essa ideia de Uau, eu tenho essa personalidade, mas não a posso expor já que minha aparência física não combina com ela. O garoto apaixonou-se por Katrin, e eu me apaixonei por ele. Nosso relacionamento telefônico durou meses. Ele ficou muito elaborado. E então um dia eu me encontrei com ele, como Laura, a amiga da Katrin, e começamos a sair juntos. Eu recortei uma foto de uma menina bonita de um antigo anuário escolar para mostrar a ele. Os amigos dele ficaram sabendo dela e também falavam com ela por telefone. E eles passaram a andar comigo também, mas não sabiam que eu era Katrin. Chegou ao ponto de toda a vizinhança ficar apaixonada por ela. E eu me apaixonei por esse cara, como acontece quando se tem doze anos, quando isso é seguro. Era tudo muito real, e aquilo tinha tomado conta de mim. Eu não sabia como fazer para parar, mas percebi que tinha que acabar. Então eu fiquei sabendo desses tipos de câncer que podem se desenvolver muito rápido, e o atribuí a Katrin, e um dia quando o rapaz ligou eu disse a ele que Katrin tinha morrido. Na manhã seguinte a mãe do menino apareceu na porta de casa. A família do garoto estava realmente triste e queria saber o que tinha acontecido. E minha mãe era do tipo: – De que porra você está falando? Lembro-me de ouvi-los conversar na sala ao lado e de me sentir com o coração partido. Eu não queria que nada daquilo tivesse acontecido.

Você se envolveu em muitas confusões quando era criança?
Não em muitas, antes de os meus pais se divorciarem. Isso aconteceu no ano seguinte, quando eu tinha treze anos, e meu mundo virou de cabeça para baixo. Eu comecei este diário quando tinha onze anos, e havia nele somente aqueles comentários normais, de fofoquinhas da escola, de como eu não era popular, até que um dia eu percebi que meus pais podiam se divorciar. Era realmente assustador, eles andavam brigando muito. E o comentário seguinte foi: Laura Albert morreu no parto e eles me colocaram no corpo dela. Eu tinha realmente certeza de que havia morrido e que eles haviam tirado Laura do meu corpo e colocado um estranho no lugar. E eu tinha todas essas evidências mostrando que eu era diferente, como os meus dedos eram tortos e eu tinha uma pinta na orelha e todas essas coisas. As coisas ficaram mais e mais dolorosas – houve muita violência na minha casa – e eu parei de ir à escola. Abandonei os estudos no oitavo ano. Minha mãe teve namorados que vieram morar conosco e que não agiam adequadamente comigo. Era um elenco itinerante de personagens – um índio chamado Cavalo Forte que havia cumprido sentença por homicídio, um maníaco-depressivo chamado Stanley, Bob Motocicleta, e por aí ia. Era assustador, mas na época eu achava que sexo era uma troca justa, pois eles me ofereciam coisas pelas quais eu estava ávida: atenção, afirmação ou uma figura paterna.

Seu pai saiu de cena?
Eu o via de vez em quando, mas depois eu parei de vê-lo porque era muito doloroso.

O que você fazia durante todo o dia já que não ia à escola?
Ficava em casa ligando para essas linhas diretas. Ligava para qualquer linha direta que oferecesse ajuda a crianças. Eu sempre ligava como menino, contava histórias. Não é como se eu tivesse o desejo de ser transgênero, mas eu não passava as noites rezando por uma família feliz e normal, nem para ser magra. Eu pedia, Deus, permita-me acordar sendo um garoto. Era uma salvação para mim. Era onde estava a força e foi o que me tornei.

Você virou menino ligando para linhas direta de ajuda?
Eu precisava de barreiras de proteção. Ser uma garota estava próximo demais de mim. Eu jamais poderia dizer, por exemplo, que a minha mãe tentou atear fogo no meu quarto, ou que eu tive que me enclausurar no meu quarto porque minha mãe estava vindo em direção à porta com um martelo na mão, ou que eu ia para a escola com queimaduras de terceiro grau causadas por café quente despejado em mim.

E você explicava tudo isso para os operadores das linhas diretas de ajuda?
Claro que não. Numa ligação eu podia usar um sotaque sulista e falar sobre algo acontecido no Sul. Ou podia me passar por um garoto católico irlandês que descobre ser gay e está tentando lidar com isso. Essa história teve mais envolvidos – eu tinha livros sobre a Irlanda os quais estava estudando – e aconteceu que o irmão desse cara gay era do IRA.

Você já se sentiu mal por fingir essas coisas para pessoas que estavam lhe oferecendo ajuda?
Bem, eu precisava de ajuda. Eu não passava o tempo inteiro pensando, Que legal, estou enganando essas pessoas. Não era assim. Era mais algo como, eu estou me mantendo viva. E era uma espécie de troca com os atendentes dessas linhas de ajuda – muito disso envolveu sexo. Você sabe, como um monte de alcoolatras trabalham em bares? Muitos pedófilos trabalham perto de crianças. Entrei em modo de serviço. Eu já sabia como fazer aquilo, pelos caras mais velhos que estavam perto de mim, por ter sido molestada, e eu sentia como se tivesse o controle da situação, uma vez que eu era um garoto. Havia um cara com quem eu vinha conversando, que se descrevia como um terapeuta infantil – ele tinha um anúncio no Village Voice – e quando ele descoriu que eu era uma menina de dezesseis anos, e não um menino de quatorze, disse para mim: Não me ligue nunca mais. Ele respondeu com os nervos ao invés de se perguntar: Por que essa menina inventou essa história? O que leva uma criança a fazer uma coisa dessas?

Você chegou a fazer alguma espécie de terapia formal, face-a-face, quando era criança?
Estávamos consultando um terapeuta familiar. Eu tive um distúrbio alimentar. Eu realmente acreditava que se eu fosse magra tudo ficaria bem. Esse era o meu foco. E esse terapeuta recomendou que eu fosse internada no Saint Vincent. Combinei com a minha mãe que nós iríamos dar uma olhada no hospital e se não fosse bom nós iríamos embora. Assim que chegamos lá percebemos que não era um lugar legal: havia percevejos enormes nas paredes, a pintura estava descascando e pessoas de idade estavam sentadas por ali esperando a morte chegar. Então eu disse para minha mãe: – Vamos embora. Ela olhou para mim e respondeu: – Eu vou, você fica. Ela foi embora. Corri até a porta, mas ela estava trancada, as janelas estavam fechadas e então apareceram as enfermeiras com comprimidos de Thorazine. Minha mãe depois me disse que foi como quando tínhamos que deixar meu cachorro no canil. E eu até me parecia com um, OK, mas eu não sou um cachorro.

Quanto tempo você passou no hospital?
Saí depois de cerca de quatro dias, cantando e dançado como nunca havia feito antes. Eu suprimi toda a emoção. Eu disse a eles: – Mal posso esperar para voltar para a escola. Mas minha mãe deixou muito claro para mim. Ela disse: – Mais outra merda e você volta direto pra cá.

Você conseguiu se manter longe do hospital depois disso?
Ah, não. Mas primeiro eu voltei para a escola, quatro escolas na verdade – eu larguei todas elas, uma após a outra. Eu simplesmente não podia mais aguentar. Então eu descobri o punk rock e de repente a minha vida ganhou um propósito. Essa música expressava a raiva que eu sentia. Era o meu idioma. Entrei na cena punk de Nova Iorque dos anos 1980. Havia um clube na Avenida A chamado A7 aonde todo mundo ia. Bad Brains tocava lá, Agnostic Front, Minor Threat, e os Beastie Boys, quando eles ainda eram uma banda de hardcore. Comecei a namorar um skinhead e passei a interagir com meus heróis neste mundo. Alguns dos rapazes das bandas eram realmente hostis com relação às garotas, mas como eu falava com eles como um garoto, de repente eles se abriam.

Você continuou morando em casa depois de ter largado a escola?
Até eu voltar para o hospital por cinco meses, sim. Desta vez, antes de eu sair do hospital, os assistentes sociais sugeriram enfaticamente que eu não voltasse para casa e eu fui mandada para um abrigo dirigido pela Associação Judaica de Cuidado ao Menor no Upper West Side. Eu estava em um programa psiquiátrico diurno. Tive terapia particular com uma assistente social, terapia de grupo, e eu ainda via um psiquiatra do hospital, mas aquilo não estava me ajudando em nada. Então eu dava uma escapada, ia até um telefone público e telefonava para linhas diretas de ajuda de todos os Estados Unidos inventando novas histórias – sempre como um menino – para aliviar meu tormento. Depois de ter passado quase quatro anos no abrigo, percebi que precisava sair de Nova Iorque. Alguns amigos meus skinheads se mudaram para São Francisco, e parecia uma boa alternativa. Mudei-me para cá em 1989, o ano do terremoto. Iniciei um programa de doze passos para transtornos alimentares, e me empenhei muito nele, e também comecei a tocar música. Comecei uma banda com Geoff, que mais tarde tornou-se meu namorado e pai do meu filho. Nossa banda se chamava Daddy Don’t Go. Grandes selos ficaram interessadas, mas aprendi bem rápido que atenção era uma coisa perigosa para mim. Eu não posso ter atenção suficiente para me curar. Então eu simplesmente não consegui concilicar as coisas e a banda se separou.

Você tinha um trabalho para se dedicar?
Mais ou menos nessa época, um escritor local que gostava da minha banda, James Cury, me ligou. Ele era um editor sênior na The Web Magazine, uma das primeiras revistas a cobrir a internet – era 1996. Ele gostava da minha banda e da minha personalidade e achou que eu poderia escrever comentários de páginas de sexo para eles. Então eu comecei a fazer isso. Eu tinha senha para tudo o que era site de sexo e escrevia críticas realmente engraçadas. Nessa época eu escrevia e também fazia sexo por telefone. Eu tinha começado a fazer sexo por telefone em Nova Iorque, quando ainda era menor de idade. Aquilo me permitia sair do meu corpo e incorporar qualquer espécie de ente sexual. Eu podia fazer qualquer sotaque que existisse. Eu era asiática, russa, alemã, sulista, sueca, todos os clichês.

Era legal para você ou foi apenas um ganha-pão?
Eu gostava de alguns dos caras. Eu gostava de conversar com eles sobre as vidas deles. Ainda tenho amizade com alguns deles.

Estes foram então seus primeiros empregos estáveis?
Escrever sobre sexo era fácil e eu estava fazendo muito sucesso. A Rolling Stone me convidou para fazer um programa de rádio on-line para eles. Então eu escrevi para a revista Adult Video News. Mas eu percebi: isso não é literatura. Eu queria deixar alguma coisa que causasse impacto. Mais ou menos nessa época eu também tinha começado a andar com uns garotos da Polk Street, depois da California Street. Todo mundo estava usando heroína e maior parte deles caiu. Aqueles meninos estavam tão abandonados. Os serviços comunitários os tratavam como se eles estivessem drenando os recursos da cidade, desviando-os de pessoas que poderiam realmente ser beneficiadas pelos serviços. Mas como é possível não fazer nada quando se está ciente do sofrimento deles? Eu me senti muito identificada com essas crianças de rua barra-pesada e elas percebiam que eu conhecia o mundo. Eu perguntei: – Como posso ser útil? Passei a me envolver com o programa de troca de agulhas – dava agulhas esterilizadas aos meninos para que eles não fossem infectados pelo HIV – e também senti que precisava absorver as histórias deles.

Você já havia parado de ligar para as linhas diretas de ajuda a essa altura?
Não, eu continuava ligando para elas o tempo todo. Mas então eu comecei a conversar com um psiquiatra chamado Terrence Owens. Conversávamos meia hora por dia por telefone e passei a viver minha vida em função disso. Era a única hora em que eu me sentia viva.

Você conversava com ele sendo você mesma, Laura Albert?
Não, eu ligava para ele me passando por um rapaz chamado Jeremiah. Ele tinha 13 anos na época, era de Virgínia Ocidental. De início eu ainda não conhecia ele muito bem. Assim como em relação a outros de meus personagens, eu não sabia de quem se tratava até que a pessoa começasse a falar através de mim. Ele se revelaria para mim, eu o deixaria desenvolver-se, e então iria para aquele outro mundo, que era muito melhor para mim do que o meu próprio mundo, que eu odiava. Nunca cheguei a pensar, Meu Deus, isso não é verdade. Parecia mais vivo e verdadeiro para mim do que qualquer uma das coisas existentes no meu mundo.

Qual foi a história que surgiu sobre Jeremiah?
A família de Jeremiah era instruída e rica. O avô dele era dono de emissoras de rádio e de torres de telefone e era um homem muito religioso. A mãe dele se chamava Sarah, que o deu à luz aos treze anos. O pai dele era um teólogo que entrou em sua casa para estudar com o avô e acabou seduzido por Sarah, que era uma rebelde, experimentando sua incipiente sexualidade. Mas ela ainda era uma inocente, uma criança, então também pareceu um estupro. Então o pai a proibiu de abortar e pouco depois ela deu à luz Jeremiah, que foi mandado para ser criado por uma família adotiva. Sarah começou a trabalhar como garçonete e fazia biscates, tentando apenas se sustentar. Ela começou a beber. Quando ela tinha dezoito anos, o Estado entrou em contato com ela para que abrisse mão de seus direitos maternos em favor da família adotiva. Ela se recusou a aceitar e o pai dela a ajudou a recuperar a criança porque não gostava de interferência do governo – ele era muito conservador e contrário ao governo. Ela então pegou o filho de volta, mas Jeremiah, que tinha quatro anos, não entendia por que sua família adotiva tinha aberto mão dele. Sarah dizia que era porque ele era um mau menino. Ela o  assustou para que ficasse ao lado dela. Como poderia uma criança ter ideia desse tipo de traição? Que noção de traição tem cada um de nós numa idade tão tenra? Todos os dias, nos telefonemas para o doutor Owens, alguma novidade da história de Jeremiah se revelava para mim.

Em algum momento ele questionou a veracidade da sua história?
Não. Ele me ajudou com os sentimentos subjacentes, porque era tudo muito verdadeiro para mim. Eu só contei uma história que assimilava aquela dor que eu sentia. Então Sarah e Jeremiah viajaram bastante por aí – Portland, Seattle, Los Angeles. Eles viviam na miséria, e os dois iriam fazer bicos – o que era verdade para mim na época. Jeremiah tentava imitá-la. Era como eu, quando menina, agia de modo sedutor em relação aos homens que minha mãe levava para casa, sem entender realmente o que estava fazendo. Eu fui estuprada, mas não vi aquilo como estupro. Eu não conhecia aqueles termos. Segui em frente com aquilo e, em certas ocasiões, sem entender as consequências, eu mesma deflagrei aquilo. Isso é o que muitas pessoas não compreendem sobre o abuso. As pessoas querem acreditar que a criança é sempre inocente e angelical, mas, me desculpe, crianças que sofrem abuso desenvolvem estratégias de sobrevivência que não são nada atraentes. Elas podem ser capazes de provocar violência, pois ser agredida se parece com uma articulação do amor. Isso não é conveniente nem bonito, mas é verdade. Isso também não significa que a criança seja culpada – a criança não entende. Assim aconteceu com Jeremiah. Ele queria atenção e amor sem realmente saber como conseguir. Na rua, Jeremiah chamaria a si mesmo de Exterminador. O nome era uma espécie de piada, pois se tratava justamente do oposto de sua real personalidade, que era tímida e introvertida. Jeremiah gostava desse apelido porque dava a ele uma sensação de poder. Então às vezes ele era Jeremiah, às vezes ele era Jeremy, às vezes ele era o Exterminador do Futuro e mais tarde se tornaria J. T. O sobrenome dele era LeRoy, que é o nome de um grande amigo meu. Por fim, Sarah abandonou-o um motel em São Francisco e Jeremy queria se matar. Ele não queria mais voltar a biscatear ou a morar na rua. Ele queria encontrar um terapeuta que dissesse a ele que ele podia se suicidar, que ele não iria para o inferno se o fizesse, pois ele simplesmente não conseguia mais aguentar a dor. Isso foi muito verdadeiro para mim. Eu queria que alguém me dissesse: – Tudo bem, você pode desistir agora. Eu me sentia uma suicida e não conseguia expressar aquilo sendo eu mesma, então Jeremy assumiu. Jeremy conversou com muitas pessoas diferentes, até um dia encontrar o doutor Owens.

Você inventou o Jeremy, mas diz que ele tomou conta de você, como se existisse independentemente de você.
Eu tinha a real sensação de que ele era um outro ser humano. Falo sobre ele no passado por que sinto que a energia dele não é mais a principal força dentro de mim, como era na época.

Como você decidiu apresentar J. T. para o mundo, para além dos limites de sua terapia?
O doutor Owens me pediu para colocar minhas histórias no papel. Ele estava lecionando na Universidade de São Francisco, dando aulas para pessoas que queriam ser assistentes sociais, e ele sabia o quanto eu odiava os assistentes sociais, então ele disse: – Você pode ensinar a eles como a coisa funciona na realidade. Gostei daquilo, pois senti que eu poderia ser útil. E, agora eu percebo, foi uma maneira de me fazer começar a escrever. Quando escrevi a primeira parte eu ouvi uma voz. Era uma história chamada “Ballons”, sobre o uso de heroína. Escrevia as histórias à mão porque não sabia digitar. Então eu mandava a ele por fax ou às vezes pegava a bicicleta e ia até a faculdade entregar as histórias pessoalmente. Eu era guiada e faminta por saber o que tinham achado.

Você se apresentava em pessoa, como Laura?
Não, eu me apresentava como Speedie, amiga de Jeremy. Era quem eu era em público, uma
mulher, mais tarde conhecida como Emily, cujo apelido era Speedie. Ela falava com um sotaque Cockney irritante e cantado, dava vontade de bater nela, mas ela já havia estado em vários lugares, pois o pai dela era do exército. Ela teve uma vida difícil, saiu de casa cedo e foi morar em São Francisco. Eu também dizia que ela era do mundo do sexo, porque havia pessoas que poderiam ter me reconhecido. Estive algumas vezes com Terry – o doutor Owens – como Speedie.

Quando você escrevia, você sentia J. T. assumir o controle da mesma maneira como quando falava? Você sentia que J. T. estava escrevendo?
Não, quando escrevia, sentia mais como se fosse eu tentando criar uma história. Ele ditaria a história e eu era a secretária que colocaria no papel e diria: – Muito bem, obrigado, agora eu vou tentar transformar isso em arte. Mas da mesma forma que eu não sentava ali me imaginando como J. T., eu também não tinha que ser Laura, uma vez que estava escrevendo.

O que o doutor Owens – ou os alunos dele – fez das suas histórias?
Eles trabalharam os textos de forma terapêutica. Mas eu realmente queria saber o que eles tinham achado da escrita. Então o doutor Owens me colocou em contato com um vizinho dele, um editor chamado Eric Wilinski, que me deu resposta. Um cliente de sexo por telefone havia chamado a minha atenção para a poesia de Sharon Olds, e eu realmente a admirava. Quando comentei isso com Eric, ele disse que tinha estudado com ela e sugeriu a mim que escrevesse diretamente para ela. Eu disse: – Não, não se pode fazer isso. Ele disse: – Sim, pode, eu já falei com ela, e ela quer que você escreva para ela. E ela me escreveu de volta. Ela leu “Balloons” e a resposta dela foi realmente graciosa. Simultaneamente, eu fiz contato com um escritor de ficção gay de quem eu simplesmente tinha pavor. Havia um monte de coisas perturbadoras nos livros dele, coisas de transgressão sexual, e a forma como ele capturou a solidão e a carência da adolescência ressoou muito dentro de mim. Telefonei para ele usando o nome Exterminador e falei como Jeremy. Ele era alguém que eu reverenciava, mas percebi que, quando li o meu trabalho para ele ao telefone, da mesma forma que tinha gostado do que escrevi, ele ficou sexualmente excitado com a perversidade e a violência das histórias. Então ele começou a transformar a nossa relação em um relacionamento sexual. Era como os namorados da minha mãe: eu os queria manter por perto, então eu entrava em modo de serviço. Ele achou que estivesse conversando com um garoto de treze anos de idade e toda hora me convidava para ir a sua casa. Eu pensava: atenção sexual é melhor do que atenção nenhuma. Eu tinha aprendido na rua, com os assistentes sociais, que se eventualmente você encontrar envolvido em uma situação sexual perigosa, apenas diga ao homem que você tem aids – essa era uma estratégia de sobrevivência de última instância. Então eu finalmente coloquei freios na situação e disse a ele que eu tinha aids e manchas por todo o corpo. Eu não o assustei nem um pouco. Há pessoas que gostam de brincar com situações extremas. Eu estava ao mesmo tempo assustada e aliviada. Se ele fosse capaz de ter compaixão por uma pessoa que não é bonita, que está de fato desfigurada, isso significaria que ele seria capaz de ter compaixão por mim, Laura.

Mas ele não sabia da existência de Laura. Ele chegou a ajudá-la como J. T. de alguma maneira?
Ele me enviou um romance de um outro escritor gay, com quem entrei em contato. Esse cara também acabaria me convidando para ficar com ele, mas ele passou meu trabalho adiante para uma redatora do Village Voice chamada Laurie Stone, que acabou incluindo um dos meus contos, “Baby Doll”, em uma antologia intitulada “Close to the Bone”. A antologia recebeu um monte de críticas, e muitas das críticas destacavam meu conto, diziam quão cru e intenso ele era. Logo em seguida eu tinha um agente, Henry Dunow, e a Random House queria publicar uma coletânea com meus contos. Mas eles queriam lançá-los como uma memória de não-ficção, e eu não quis. Era uma época de febre das memórias. Haviam sido lançados The Kiss, de Kathryn Harrison, e The Liar’s Club, de Mary Karr, e os livros explorando abusos infantis também pipocavam por todos os lados. Mas eu não queria publicar as histórias se elas não fossem capazes de se sustentar como ficção. Eu tinha começado a me corresponder com a escritora Mary Gaitskill, e ela me deu um retorno imensamente positivo, mas foi também a primeira pessoa a fazer críticas sobre a minha escrita. Ela estava me conduzindo na direção da grande literatura – Vladimir Nabokov e Flannery O’Connor – e então eu percebi o quanto ainda tinha para aprender.

Ela em algum momento quis conhecer J. T.?
Sim. Ninguém jamais o conheceu pessoalmente e já começavam a surgir rumores de que ele não era real, então eu sabia que precisava aparecer com um corpo. Marquei um encontro para conhecer Mary e decidi contratar alguém para fazer o papel de J. T. Mas eu não conhecia ninguém que correspondesse à minha descrição física de J. T. Então Geoff e eu entramos no carro e começamos a rodar pela Polk Street para cima e para baixo, até que vi um rapaz que nunca tinha visto antes. Ele tinha dezenove anos e era pequeno, louro, de olhos azuis – perfeito. Eu disse a ele: – Você quer ganhar cinquenta dólares, sem sexo? Ele respondeu: – Claro. Eu disse a ele que não precisava falar, apenas dizer “oi” para uma mulher chamada Mary, apavorar-se e sair. Levei-o ao café. Mary Gaitskill estava sentada lá. O garoto foi até ela, disse: – Oi, eu sou o Exterminador. Ele então entregou a ela um chocolate e um vidro de vinagre, coisas que eu tinha comprado para dar de presente a Mary. Ela disse: – Oi, prazer em conhecê-lo. Quando o garoto saiu correndo eu me sentei. Estava ali como Speedie, e nós conversamos.

O que Geoff achava do que você estava fazendo?
Durante a maior parte do tempo, ele não sabia o que estava acontecendo. J. T. era uma coisa suja para mim, algo que eu fazia às escondidas, para continuar viva. Ele se manteve fora disso porque realmente não queria saber.

Como você acabou contando a ele?
Eu não cheguei a contar para ele. Ele aos poucos foi percebendo. Nós nunca chegamos a ter uma conversa sobre por que era daquele jeito.

Sarah foi publicado em 2001. Era a história que J. T. ainda vivia na rua naquele momento?
Não, Jeremy estava morando comigo nessa época. No telefone, ele diria: – Estou morando com minha amiga Speedie e o namorado dela, Astor. Era o nome que eu dava a Geoff: Astor. E quando eu fiquei grávida, J. T. também diria: – Speedie vai ter um bebê, ela está entrando na linha. E J. T. também podia se rebelar e dizer: – a Speedie é uma vadia. Como J. T., eu podia falar esse tipo de merda sobre mim mesma.

O fato de ter um filho afetou de alguma maneira a forma que você escreve como J. T.?
J. T. continuou seguindo adiante em seu próprio ritmo. Comecei a escrever um romance, Sarah, logo depois de ter meu filho.

Havia uma foto do autor no livro. De quem era?
Meu editor pagou para usar uma fotografia de um adolescente que se parecia muito com J. T. e obteve autorização para divulgá-la como a foto do autor. Quando Sarah foi publicado e recebeu críticas fabulosas, as revistas queriam publicar artigos sobre J. T. com suas próprias fotos. Elas não queriam usar a foto de divulgação. Então, uma vez mais, eu percebi que tinha de aparecer com um corpo.

Um corpo que se parecesse exatamente com o da foto?
Ou que fosse parecido o bastante. Eu amo Andy Warhol e tinha lido que ele mandava pessoas para se passarem por ele. Então quando a revista Interview, fundada por ele, quis uma foto de J. T., perguntei a uma garota que vi na Valencia Street, uma sapata bonita provavelmente na casa dos vinte anos, se podia tirar uma foto dela por quinze pilas. Coloquei um par de óculos escuros nela, a fotografei como J. T. e eles pubicaram. Mas havia mais revistas ficando interessadas. Eu precisava de mais fotografias. Savannah, a meia-irmã mais nova de Geoff, sabia de J. T., e me ocorreu que eu poderia usá-la como modelo sempre que não conseguisse encontrar outra pessoa disponível. Ela tem essa centelha incrível, um jeito de estrela, e me deixou fazer algumas fotos dela. Quando vi o resultado, eu disse: – Meu Deus, você se parece exatamente com a foto de autor do J. T.

Por que você usa meninas para se passaram por J. T.?
Bem, primeiro eu tentei encontrar um cara. Eu queria até mesmo que J. T. dissesse às pessoas: – Preciso encontrar um dublê, como Andy Warhol. Mas no fim eu percebi que o sexo não importava. Tratava-se mais de encontrar um visual específico e uma ressonância emocional. Aconteceu de Savannah ser do sexo feminino. Mas mesmo depois que ela começou a aparecer como J. T., continuei sempre à procura de outra pessoa, eu sabia que não era fácil para Savannah se vestir como ele. Aquilo exigia uma transformação física completa, muito além da peruca loira, do chapéu preto e dos enormes óculos de sol.

Você a deixava falar com os jornalistas ou apenas posar para fotos?
Inicialmente, eu pedi a ela para que não falasse nada. Mas ela tem um bom ouvido, e ao me ouvir falar ao telefone como J. T. foi capaz de pegar o sotaque sulista, a fala lenta e algumas frases características de J. T., como: – E aí, eu sou J. T.. Ela começou a falar mais à medida que começou a dar mais entrevistas, mas levou um bom tempo para Savannah se comprometer a ser J. T., e desde o início ela de vez em quando quase ferrava tudo. Uma vez ela disse ser de Virgínia do Norte – e as pessoas disseram coisas como: – Ah, o J. T. gosta de sacanear os outros. Numa outra vez fomos fazer uma filmagem e tinha um cara que tinha trabalhado com o pai dela. Savannah me empurrou para dentro do banheiro, me contou e meu coração disparou. Pensei: – Bem, tivemos bons momentos. Por sorte ele não a reconheceu. E esse tipo de coisa continuou acontecendo. Quando Savannah dava autógrafos, ela via pessoas que ela conhecia e essas pessoas não a reconheciam.

Como você conseguia viajar com Savannah quando ela estava se passando por J. T.? Vocês fizeram documentos falsos?
Sim, mas ela tinha seu próprio passaporte. Apenas os agentes da alfândega veriam, mas mesmo assim éramos cuidadosas. Quando os direitos de publicação dos livros foram vendidos para outros países, tivemos de ir ao Japão, ao Brasil, viajamos por toda a Europa, e tínhamos um ritual. Quando desembarcávamos, rasgávamos todas as etiquetas com nomes que púnhamos nas bagagens.

Então você tinha medo de ser exposta?
Conversávamos sobre isso de vez em quando, mas sabíamos que não estávamos mal-intencionadas, então não tínhamos vergonha disso. Nós nos perguntávamos: Estamos fazendo alguém fazer alguma coisa contra a vontade? Estamos sendo úteis? Estamos fazendo as pessoas se sentirem bem e disseminando o amor? Sentíamos que sim. As pessoas retribuíam com muito amor e felicidade a J. T. e a sua escrita. Não era como se estivéssemos espalhando alguma coisa ruim. E houve pessoas que entraram em nosso círculo e ficaram muito próximas de nós. Houve sexo com pessoas.

Não chegava a um ponto no qual você precisava explicar a o que estava acontecendo?
Quando me aproximo mais de alguém, sempre conto. Eu dizia: – Sou J. T. LeRoy. Eu escrevo livros. As pessoas riam: – Sim, claro. Era normalmente essa a resposta que eu obtinha. Então as pessoas ligavam no dia seguinte para J. T. e diziam: – Olha, você precisa ficar esperta com essa Speedie. Ela é maníaca e está tentando ficar com o crédito pelo seu trabalho.

E o que você respondia?
Eu dizia: – Tudo bem, vou ficar de olho. Ou: – Speedie sabe se comportar.

Ninguém nunca notou a diferença entre Savannah em pessoa e você no telefone?
Não, porque quando ela começou a se tornar J. T., eu passei a falar como ela. Combinei a cadência. Nos meus tempos de punk, eu falava com sotaque britânico, porque era mais legal parecer britânica. Eu já saía com meu namorado skinhead fazia quatro meses quando contei a ele que não era britânica. O que eu percebi é que depois de um tempo, as pessoas começam a prestar mais atenção ao que você diz, e não à voz em si. Então você pode relaxar o sotaque e as pessoas tendem a não notar. Mas se sentia que estava falando com uma pessoa mais cética, eu mantinha tom. E quando a função de Speedie começou a se tornar mais importante, eu precisava falar como ela e como J. T. no telefone, às vezes na mesma ligação. Passava de um para o outro: – Segura na linha, vou chamar J. T. E aí J. T. começava a falar.

As pessoas acreditavam quando você dizia a elas que era J. T.?
Sim, com certeza. Em geral, acho que muito mais gente – pessoas envolvidas na publicação dos livros, pessoas que se aproximaram de mim e de Savannah – sabia que eu era J. T., mas preferia não admitir. É mais fácil alegar ignorância e me culpar do que admitir que já sabia. Em contrapartida, houve algumas pessoas a quem achei que precisava contar e não tiveram nenhum problema com isso. Uma dessas pessoas foi Billy Corgan, do Smashing Pumpkins. Quando eu o conheci, três anos atrás, foi algo grandioso, pois a música dele teve muito significado para mim. Ele leu meu trabalho, e disse que me conhecer foi significativo para ele também. Ele mantinha um relacionamento telefônico com J. T. , mas quando eu o conheci pessoalmente, contei a ele que J. T. era eu, Laura. Ele entendeu a situação em um nível intuitivo e deu grande apoio.

Você está dizendo que falaria com ele como J. T. se estivesse junto dele em um quarto?
Sim. Era algo do tipo, J. T. ainda está aqui, gosta da relação que mantém contigo e ainda tem coisas para conversar com você. E J. T. diria coisas a Billy que eu, como Laura, não me atreveria a dizer a ele.

Suas relações com músicos e celebridades do cinema eram muito diferentes das que você mantinha com outros escritores?
Sim, mas na maioria dos casos, esses tipos estrelas estavam se aproximando de mim. Ou eles mencionavam meu trabalho em um artigo de revista e então eu escrevia para eles para agradecer. Eu descobri que Sheryl Crow tinha falado sobre meu livro em seu site e fiquei atordoada. Alguém me disse que Winona Ryder estava lendo meu trabalho, e Drew Barrymore também, e fui colocada em contato com elas. Lou Reed leu os livros e foi realmente bacana. Shirley Manson leu sobre J. T. na revista The Face e nós vimos sua peça em Los Angeles, depois fizemos uma grande festa do pijama. Shirley foi tão receptiva com Speedie quanto foi com J. T., o que era raro. Ela escreveu uma música chamada “Cherry Lips”, baseada na personagem de Cherry Vanilla, de Sarah. Fizemos uma grande sessão de fotos para a edição de ícones da revista Pop. Lembro-me de Courtney Love ter-me dito: Você é um iconoclasta, J. T.

Você quer dizer que ela falou isso para Savannah?
Não, ela disse isso para mim no telefone. E eu fiquei tipo, uau. Eu pegava o jornal e as coisas ganhavam referência como “modo J. T. LeRoy”. Era surreal. Músicos começaram a me pedir para escrever histórias sobre eles para anexar aos press releases do lançamento de seus álbuns. Escrevi um para Billy Corgan, um para Bryan Adams, outro para Nancy Sinatra, Bright Eyes. J. T. era a pessoa a quem se devia recorrer se você quisesse parecer cool ou se comunicar com o público jovem. Shirley Manson passou meus textos para Bono e em uma entrevista à Rolling Stone Bono falou sobre como Maldito Coração estava mexendo com sua cabeça. Nós o conhecemos e ele foi maravilhoso com todos nós. A diretora Allison Anders leu Sarah e o repassou a Madonna, e ela me disse que Madonna estava lendo. Eu estava na Flórida, nadando na piscina da casa da minha avó e pensando, Meu Deus, Madonna está no meu mundo. Foi uma sensação incrível. Eu sei que se a conhecer, ela não vai registrar. Então saber que ela estava no meu mundo não deveria ter me dado essa sensação de euforia, mas deu. Lembro-me apenas que fiquei nadando de um lado para o outro na piscina. Era como se eu estivesse passando sobre uma fonte de contentamento que me dava energia. Ela está no meu mundo, ela está no meu mundo, ela está no meu mundo. Mas Madonna e eu nunca tivemos muito a dizer uma à outra, era mais uma coisa de vaidade. Uma vez ela me mandou um monte de livros de cabala. Fiquei com um e vendi o resto. Eu precisava mais do dinheiro que da cabala.

Como você se sentia quando via Savannah em público como J. T.?
Eu não via Savannah, via J.T. Era um grande alívio, porque J. T. saía de mim e entrava nela. Eu sentia espanto, euforia, orgulho. As pessoas faziam fila o dia inteiro para vê-lo. Ele era tratado como uma estrela do rock. Tiveram de nos arrumar seguranças, pois todas essas pessoas queriam tocá-lo. Eu me lembro de uma vez que fomos para a Suécia fazer uma leitura e as pessoas se curvavam e se ajoelhavam diante de J. T. Aconteceu espontaneamente e foi lindo. E eu estava ali do lado, perguntando às pessoas o que as havia levado ali. Elas sempre falavam dos livros. Eu conseguia o que queria – me conectar com as pessoas – sem ter que ser o foco das atenções.

Você se preocupava com o modo como tudo isso estava afetando Savannah?
Sim, muito. No outono de 2003 começou a produção do filme Maldito Coração, com direção de Asia Argento. Houve uma quantidade alarmante de uso de drogas no set de filmagem e muita gente queria ficar perto de J. T., oferecendo a Savannah drogas e álcool. Eu fiquei furiosa. Ali eles sabiam que J. T. tinha problemas de abuso de substâncias estavam lhe oferecendo drogas! E, claro, eu também tinha medo que ela pudesse dizer ou fazer algo que pusesse tudo a perder. Não é nenhum segredo que ela e Asia tornaram-se namoradas.

Então Asia sabia que J. T. era mulher?
Sim, claro.

E outras pessoas devem ter notado também. Como você explica a aparência feminina de J. T.?
Savannah estava realmente começando a abraçar J. T. a essa altura. Até mesmo o corpo dela tinha mudado. Ela se tornou muito masculinizada, parou de menstruar, os seios dela diminuíram. Ao mesmo tempo, J. T. estava se transformando em uma mulher – era essa a realidade dele. Ele começou a falar sobre passar por tratamentos hormonais e submeter-se a uma cirurgia de mudança de sexo.

Enquanto seu filho crescia, ele estava ciente do fenômeno J. T.?
Quando ele tinha uns seis anos, expliquei para ele, e ele conseguiu entender de imediato. Ele via Savannah e sabia quando ela estava se passando por homem e quando não estava. Ele já nasceu nesse mundo, por isso era mais natural para ele. Eu não precisei treiná-lo. Os pronomes eram usados de forma muito vaga. E quando ele saía com a gente, não o chamávamos por seu nome verdadeiro – nós o chamávamos de Thor.

O que você previa para o futuro de J.T.? Você esperava que ele crescesse e continuasse a escrever?
Eu sempre senti que J. T. era uma mutação, um pulmão compartilhado, e para que eu me tornasse normal teria que passar a respirar por conta própria. Originalmente eu achei que ele pudesse vir a morrer de aids, mas isso não está em nenhum dos livros. Eu nunca neguei os rumores, mas também nunca fiz nenhuma declaração destinada a impulsionar a popularidade de J. T. alegando que ele teria aids. Lembro-me que um dia há uns dez anos pensei: ele vai morrer neste fim de semana. Ingressei em um luto profundo. Fiquei fisicamente doente. Mas J. T.  não queria morrer, e eu não podia deixá-lo morrer. Senti que se ele morresse, eu morreria também.

Quando o New York Times informou a você que a iria expor como autora dos livros de J. T. Leroy, você negou?
Eu disse: – Não sei do que você está falando. Eu não estava pronta para admitir nada. Eu publicava tudo como ficção. J. T. era minha proteção. Ele era um véu sobre outro véu, um filtro. Eu nunca vi isso como uma fraude. Foi bizarro, quando os artigos saíram, ler aquelas interpretações do que estávamos fazendo. Meu objetivo era viver. Um cara de relações públicas gritou comigo no telefone: Você é uma fraude! Você é uma farsa, vá se foder! O terapeuta da escola do meu filho disse para mim numa outra ocasião: – Sabe, do meu ponto de vista, eles a estão acusando de ser uma grande escritora. Mas você não saberia disso. Você acharia que era por drogas, ou por uma rede de prostituição.

Você em algum momento se envergonhou – ou se envergonha – de ter enganado as pessoas que acreditavam em J.T.?
Eu sofro, mas é um tipo diferente de vergonha. Fico triste por ter saído tão machucada. Muita gente se inspirou pelo fato de alguém tão jovem poder escrever o que eu estava escrevendo. J. T. é quinze anos mais novo que eu. Tudo o que posso dizer é que sinto muito pelas pessoas que se decepcionaram ou se sentiram ofendidas. Se a informação de que sou quinze anos mais velha que Jeremy desvaloriza meu trabalho, então lamento muito por acharem isso. Tudo que é necessário saber sobre mim está nos meus livros, em formas que nem eu mesma consigo entender. Acho que algumas pessoas acreditam piamente que podem ser reconhecidas e não serem esquecidas. Minha experiência deveria ter sido completamente ignorada, desconsiderada e desdenhada. É sobre isso que eu escrevo. Uma coisa que as pessoas muitas vezes comentam comigo sobre os personagens dos livros de J. T. LeRoy é que eles se esforçam para ser bons, mesmo em um mundo onde todas as experiências deles contradizem isso. Eu sinto que o desejo também é essencial para a minha história. Quando cheguei ao ponto no qual queria suicidar-me, alguma coisa me deu esperança. Esta esperança também está nos livros e é claro que a esperança definitiva é que eu possa me revelar sem que você vá embora.

Hoje você escreve algumas coisas para o seriado Deadwood, da HBO, como Laura Albert. Qual é a sensação de não ser mais J. T.?
É incrível para mim pela primeira vez na minha vida poder estar no mundo como Laura Albert, a escritora de sucesso. E eu estou me encaminhando para escrever ficção com meu próprio nome. Dizem para que rezemos por nossos inimigos. No fim, o que eles me deram foi uma dádiva, e eu lhes devo gratidão.

Você ainda faz terapia com o doutor Owens?
Sim. É um relacionamento sagrado. Quando toda a história ruiu, ele disse que eu estava pronta para dar o passo seguinte, que era ser eu mesma. É como quando um soldador tem estilhaços de metal encravados pelo corpo, mas não sabe que eles estão ali até passar por uma ressonância magnética e o ímã começar a puxá-los para fora. Foi assim que funcionou comigo. Eu sinto que, em meu trabalho com Terry, os estilhaços estão apenas começando a sair.

Então hoje quem é você quando conversa com o doutor Owens? Você ainda é J. T.?
Não. Eu sou Laura.

Entrevista: J. T. LeRoy
A Nathaniel Rich
The Paris Review
Tradutor: Ricardo Gozzi
Março/2012

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